Foto: Camila Cunha |
Gabriela Féres, Jornalismo B
Fernanda Nascimento -
O lançamento oficial do Gemis foi em setembro de 2014, mas a gente já
estava se articulando desde abril. O estopim para o desenvolvimento do
Gemis foi a notícia que saiu no jornal Zero Hora sobre a agressão
sofrida por Natália Rios, uma mulher trans. A reportagem trazia uma
série de confusões sobre a identidade de gênero e orientação sexual. Ao
longo da notícia tinha, por exemplo, o nome que foi designado a ela no
nascimento, que é um nome masculino, o que é uma violência também, além
da agressão física que ela já havia sofrido, o jornal estava fazendo uma
agressão simbólica. Nós sabemos que as pessoas transexuais costumam,
inclusive, chamar o nome que lhes foi designado no nascimento como
falecido ou falecida, então elas passam por todo um processo de
identificação, de conseguir se apresentar para a sociedade e enfrentam
muito preconceito. Então, quando elas já tem sua identidade socialmente
reconhecida entre amigos e familiares, e acontece uma agressão e o
jornalista ao retratá-la, reafirma a violência e deslegitima a
identidade da pessoa.
A partir
desse acontecimento, que é recorrente – essas notícias continuam
acontecendo a toda hora – eu, o Samir Oliveira, que era repórter do Sul21, hoje é assessor de imprensa, e a Débora Fogliatto, que é repórter do Sul21,
pensamos no que poderíamos fazer para conscientizar as pessoas a
respeito desse tema. No caso da reportagem da ZH, o Samir procurou o
jornalista que assinou a matéria e deu algumas dicas para ele sobre o
que considerava mais adequado. A ideia do Gemis é de fazer essa
discussão, interlocução entre os movimentos sociais e os jornalistas e
comunicadores. A gente não acredita que seja mau-caratismo ou uma
questão individual, não, isso é fruto de uma construção social. O
jornalismo não está separado da sociedade, ele está dentro de uma
sociedade que é excludente e que marginaliza a população LGBT e faz
muito disso através do silenciamento. Quando a gente silencia, a gente
também perpetua esse poder e essa hierarquia que é de uma norma
heterossexual e cisgênera. Essa lógica da normatividade diz que todos os
sujeitos que não são heteros e cis são anormais e que não é necessário
discutir sobre eles. Assim, a mídia reproduz diversas formas de estigmas
e discriminações.
Como o grupo se constitui hoje e quais são as formas de atuação?
No início,
nós tínhamos a ideia de ir nas redações e fazer palestras e um trabalho
de conscientização nesse sentido. Ao longo do tempo, nós percebemos que
isso não seria suficiente. Uma conversa em uma redação seria pouco,
quanto tempo os jornalistas teriam para conversar com a gente? Talvez 15
minutos. Como podemos falar de gênero e sexualidade em 15 minutos? Uma
construção histórica, que perpassou por toda a socialização dessas
pessoas, passou pela escola, passou pela universidade, passou por várias
esferas, a familiar, entre os amigos. Como é que vamos desconstruir
esses conceitos em 15 minutos? Então a gente percebeu que não teríamos
como fazer isso. A nossa ideia agora é de deslocar o debate. Nós
ajudamos os profissionais que nos procuram com dúvidas pontuais, por
exemplo, “o que significa LGBT?” ou questões mais macro de dúvidas
conceituais. Também temos feito muitas atividades em universidades,
porque é mais fácil essa questão de tempo, os alunos muitas vezes são
liberados para participar de palestras, oficinas, workshops, durante o
horário de aula. Nós temos falado muito em universidades da região
metropolitana, temos dado entrevistas também. Eu, como repórter, sempre
aprendo quando faço uma entrevista, então também é um espaço de diálogo.
O Gemis
cresceu muito nesse tempo, porque novas pessoas se incorporaram. Hoje o
grupo tem cerca de 20 pessoas, algumas são do meio acadêmico, uma colega
é pós-doutoranda, outros são doutorandos, mestrandos, tem um pessoal
que está fazendo graduação e é militante do movimento estudantil. Nós
temos experiências distintas e níveis de relação com a temática
distintos. O Gemis também foi se deslocando da discussão da população
LGBT para uma discussão mais ampla de gênero e sexualidade. Fomos
percebendo que as temáticas que nós abordávamos não eram só com relação à
população LGBT, mas também, por exemplo, temáticas de questões das
mulheres heterossexuais e homossexuais, assim como de mulheres
cisgêneras e transgêneras. Então a gente percebeu que, se a gente não
pensasse sobre gênero e sexualidade de maneira interseccional, passando
também pelas questões de raça, classe e geração, não faria sentido. Nós
estaríamos isolando e universalizando identidades. Então essa é a
trajetória que o grupo tem construído, estamos passando por um processo
de mudança da logomarca muito nesse sentido, de que a gente discute,
sim, a população LGBT, mas o nosso foco de atenção tem sido muito mais
amplo, para discutirmos também a questão do gênero, por exemplo, das
relações de homens e mulheres. Pretendemos também nos constituirmos como
pessoa jurídica para conseguirmos participar de editais e ampliar a
nossa linha de atuação. O Gemis é um coletivo, e existir juridicamente
pode nos permitir ampliar a nossa atuação para o interior do estado, por
exemplo. Nós fazemos uma militância autônoma, e talvez, com se
pudéssemos dedicar mais tempo, poderíamos alcançar mais pessoas.
Neste tempo de atuação, vocês conseguem observar mudanças na mídia? O debate tem avançado?
A gente
ainda não tem como mensurar quantitativamente, mas eu acredito que sim.
Cada matéria que a gente possa ter ajudado a um colega a mudar ou a
repensar é um avanço. Quando aprendemos qual artigo usar quando tratamos
de uma travesti ou uma pessoa trans, esse conhecimento vai ser usado
nas próximas matérias que faremos. Quando paramos para pensar em qual
artigo usar, estamos querendo respeitar a identidade daquela pessoa que
foi marginalizada ao longo do tempo.
Acredito
que teve mudanças, sim. O caráter do nosso grupo é de diálogo, já até
fizemos alguma nota de repúdio por algo mais significativo, mas o nosso
caráter não é de dizer o que está certo e o que está errado. A questão
não é problema de um veículo de comunicação ou de um jornalista. É um
problema estrutural, sobre o qual precisamos dialogar para não
distanciar as pessoas. Nosso público é formado por jornalistas, nossos
colegas, então queremos ensinar o que está certo e o que está errado,
nós também estamos em constante aprendizado. Tem surtido bons efeitos,
quando saem matérias mais problemáticas, tentamos dialogar com as
pessoas e explicar quais são as falhas, e as pessoas se mostram abertas,
porque nunca tiveram a possibilidade de conversar sobre essa questão. O
conhecimento também é um aprendizado pelo que não dizemos, então se nós
não falarmos sobre as formas de sexualidade e de gênero e silenciarmos
outras vivências, como vamos escrever sobre elas?
Como
as formas pelas quais a mídia aborda o gênero e a sexualidade ajudam na
construção do imaginário coletivo sobre esses temas?
A mídia
tem um papel fundamental na construção das nossas identidades, é um dos
lugares por onde construímos e nos identificamos. A forma como nos
identificamos e construímos as nossas identidades como mulheres e como
homens também é nas nossas relações pessoais, com família e amigos, mas
também nos veículos de comunicação. E as construções têm sido
problemáticas. Por exemplo, falando sobre a população LGBT, qual parte é
mais legitimada, quais construções estamos vendo? Na minha dissertação
de mestrado, “Bicha (nem tão) má”, pesquisei sobre as telenovelas
brasileiras. É possível perceber que, por exemplo, a identidade de
lésbicas butch, lésbica sapatão, não é uma identidade visível, tem uma
identidade que é mais legítima, que é a lésbica chique, que é uma
identidade mais regulada. Outro dia eu conversava na roda do Gemis com o
Gustavo Passos, que é doutor em Educação na Ufrgs, sobre o porquê de
não vermos homens trans na sociedade e ele apontava que os homens trans
são totalmente invisíveis para a mídia, então como as pessoas vão se
reconhecer enquanto homens trans? Na escola a pessoa é identificada como
menina, por exemplo, mas talvez não se identifique com isso e talvez
nem saiba como se identificar porque não há uma categoria formal, a
pessoa nem sabe que aquilo existe porque não está representado em lugar
algum. Então ver em uma novela pessoas lésbicas e pessoas trans e
conseguir perceber a própria identidade semelhante com aquela é
importante. No entanto, nós vemos um silenciamento de muitas
identidades, enquanto outras são escolhidas para serem legítimas,
principalmente heteros e cisgêneras, e quando se trata de identidades
LGBT, também há as que estão mais dentro da norma. O avanço que temos
tido nos últimos tempos ainda é muito regulado, somente algumas
identidades é permitida a visibilidade.
Como
a formação acadêmica interfere na construção desta mentalidade, que não
debate certos assuntos e não fala sobre determinadas identidades?
Acho que
muitas vezes gênero e sexualidade são tratados como assuntos menos
importantes pela academia. Algumas áreas do conhecimento consideram
importante a discussão, como a Psicologia, a Sociologia e a Educação,
mas na Comunicação ainda não é considerado algo importante. Eu costumo
dizer que nós não temos professores para as nossas bancas de mestrado e
doutorado, porque não existem professores que pesquisem isso, porque não
é importante perceber essas relações de poder. Parece que as relações
mais importantes são aquelas quando se fala de poder econômico. Contudo,
essas relações de gênero também hierarquizam e colocam os sujeitos em
determinados locais, onde os homens detêm o poder superior ao das
mulheres, assim como as pessoas héteros também estão em um local de
poder superior ao das pessoas homossexuais, as pessoas cis também estão
acima das pessoas trans. Então são formas de hierarquizar os sujeitos e
de dizer em que lugares eles estão. De uma forma geral, a comunicação
começou recentemente a dar alguns sinais de que talvez possa discutir
isso, mas com muita resistência, até porque muitos professores não
consideram que isso seja importante, por resquícios de décadas de
não-discussão. Há também uma percepção da esquerda de achar que é mais
importante discutir a questão de classes que discutir a questão de
gênero, de que é mais importante discutirmos questões econômicas,
sobretudo. Acontece também com a questão de raça, o Brasil é um país
onde o racismo é totalmente negado e silenciado, não discutimos sobre
isso. A maioria da população é formada por pardos e negros, que não
estão nas universidades, não estão nos locais de poder, e nós não
discutimos isso nas universidades também.
O tempo
todo o nosso local na sociedade é demarcado, sofremos discriminação e
resistência. Acessos nos são negados em decorrência dessas temáticas,
mas parece que para a Comunicação isso não é uma questão importante.
Porém, há uma geração que tem discutido mais sobre isso nos últimos
tempos. Eu me formei há quatro anos, e nesse período percebi que os
trabalhos de conclusão de curso de agora estão trazendo mais as questões
de gênero e de sexualidade, algo que não existia quando eu me formei.
Eu espero que as novas gerações pressionem as universidades para que se
fale sobre isso, para que os professores incluam essas temáticas.
A Márcia
Veiga, também do Gemis, escreveu o livro “Masculino: o gênero do
jornalismo”, e ela mostra como os modos de produção das notícias são
permeados pelas relações de gênero. Nós não precisamos de uma disciplina
específica para discutir o gênero, isso está perpassado por todas as
coisas que fazemos. Então é possível debater essas questões em qualquer
disciplina, basta querer e se preparar. Falta incentivo e reconhecimento
da importância deste assunto.
As
redações dos grandes jornais ainda são majoritariamente formadas por
pessoas brancas, heteros e cisgêneras. Que tipo de representatividade
esse jornalismo tem sobre a sociedade brasileira?
Eu
acredito que cada pessoa tem uma visão de mundo a partir da sua
identidade e dos seus marcadores. As pessoas que estão em uma posição de
privilégio social, que são pessoas do gênero masculino, heterossexuais,
brancos, de classe média ou superior. São vários marcadores que colocam
esse privilégio, então repensar do ponto de vista do outro que a
sociedade não é justa, é difícil. Mesmo no movimento feminista, por
exemplo, mulheres cisgêneras, como eu, tem privilégios em relação às
mulheres trans, e eu preciso, no mínimo, reconhecer a necessidade da
luta das mulheres trans e pensar que eu não vou ser protagonista dessa
luta, mas que eu posso estar ao lado delas. As pessoas, de modo geral,
tem dificuldade em perceber os próprios privilégios. A desigualdade é
consequência do sistema que temos. Na questão da raça, por exemplo, o
Brasil é um país majoritariamente formado por pardos e negros e muitas
pessoas não se identificam enquanto tais, porque ela não quer ser negra
ou parda, porque isso significa ser uma pessoa inferior, porque é o que
nos dizem o tempo todo, negam acesso a determinadas situações em
decorrência disso. E com essa visão de mundo, não é possível esperar
algo diferente dos jornais. Eles não vão tratar de temáticas de
mulheres, de LGBT, e de pessoas trans e de população pobre, ou sobre
essas vivências que eles nunca tiveram, e sequer pensaram sobre isso. As
pessoas que têm privilégios não querem debater questões de
desigualdade. As pessoas que comandam a mídia têm uma classe, uma cor,
uma sexualidade, e nós estamos tentando buscar brechas de resistência
dentro de toda essa construção cultural.
A mídia alternativa tem conseguido formular um discurso diferenciado sobre a sexualidade e o gênero?
Talvez. Não é porque é uma mídia alternativa que esse debate vai ser feito. Recentemente tivemos o episódio do Jornal Tabaré,
que envolveu uma questão de gênero fortíssima, o que fez com que as
meninas do jornal saíssem, em decorrência de reiteradas reproduções de
machismo e sexismo em uma redação alternativa. Então, ser mídia
alternativa não garante nada. Talvez as pessoas estejam mais
predispostas a discutir isso, porque percebam as desigualdades, mas se
não repensarmos, vamos acabar reproduzindo, de uma forma ou de outra, os
preconceitos. Pautas de gênero e sexualidade entram mais na mídia
alternativa, mas algumas vezes os padrões de relações se mantém, quem
são essas pessoas, de qual raça são essas pessoas, de qual classe são
essas pessoas.
O
caso da Laura Vermont, travesti que foi assassinada em São Paulo
recentemente, mostrou como a mídia insiste em trazer a informação do
nome de nascimento dela. Por que isso persiste, qual é a relevância
dessa informação?
Eu também
me pergunto isso. Qual é a importância de colocar o nome designado no
nascimento dessa pessoa? Nenhuma, a não ser por desrespeito,
desconhecimento e ignorância. Os jornalistas às vezes não percebem isso e
usam argumentos para justificar, alegando que é como está no registro
policial, como se a autoridade policial não fosse uma constituição
social também e o registro policial não fosse escrito por uma pessoa.
Na
esfera política, o debate de gênero não está avançando em decorrência
de questões religiosas e de conservadorismo da política, a mídia também
não está trazendo o debate como poderia. Como se pode avaliar isso e
fazer o debate com a sociedade?
A mídia
não entendeu o que está em debate. Há uma onda conservadora fortíssima, e
discutir gênero e sexualidade não é só para pessoas LGBT, mulheres. Na
política, os conservadores tentam tirar qualquer possibilidade de
discussão e do outro lado há uma bancada de Direitos Humanos que tem que
correr para todos os lados, para discutir maioridade penal, a questão
de gênero e sexualidade nas escolas. A mídia muitas vezes noticia sem
entender o que está falando, o Plano de Educação foi um exemplo disso. A
mídia não entendeu o que significava discutir gênero e sexualidade nas
escolas. A chamada “ideologia de gênero” foi uma invenção dos setores
conservadores, não existe ideologia de gênero. Os políticos pediam a
retirada da ideologia de gênero do plano, mas ela nem entrou no plano,
porque não existe. Os jornais noticiaram a retirada da ideologia de
gênero, mas não tinha ideologia de gênero. Faltou apuração, boa vontade,
conhecimento do que estava em discussão e do que significava isso, que
era a evasão escolar da população LGBT, naquele caso, mais
especificamente, das pessoas transexuais."
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