“Como é possível que a sociedade atual seja
mais rica e que, paradoxalmente, seus filhos vivam bem pior que seus pais?”
Um artigo recente do jornalista Vicenço Navarro para o diário Público na Espanha traz à pauta a nova-velha-sempiterna história das consequências antidemocráticas da concentração de riqueza: afinal, como é possível que a sociedade atual seja mais rica e que, paradoxalmente, seus filhos vivam bem pior que seus pais? A resposta é que o crescimento econômico se distribui desigualmente, concentrando-se nos estratos superiores da sociedade.
Uma das características da situação dos dois lados do Atlântico Norte foi o enorme crescimento das desigualdades com uma grande concentração dos rendimentos e da propriedade, unida à grande deterioração das instituições democráticas. As instituições políticas dos países estão muito influenciadas por poderes financeiros e setores ricos que induzem as intervenções públicas a favorecerem os interesses desses setores à custa da maioria da população.
Isto cria uma perda de legitimidade e de apoio popular às instituições chamadas representativas, junto com a diluição da confiança que a cidadania tinha no poder do Estado (dirigido pelas autoridades políticas) para garantir um progresso do desenvolvimento econômico do país, de tal maneira que as gerações novas vivessem melhor que as anteriores. Esta esperança desapareceu. Na realidade, grandes setores da população, que nalguns países chegam à maioria, são conscientes de que “os filhos não viverão melhor do que os seus pais”.
Este sentimento transpareceu nas declarações do candidato, mais tarde presidente francês, François Hollande, feitas durante a campanha eleitoral: “Até há pouco – disse Hollande – todos tínhamos a convicção de que os nossos filhos teriam melhores vidas que nós. Já não é assim. Esta convicção, que respondia a uma realidade, está desaparecendo”.
Esta situação é paradoxal, pois a riqueza dos países (incluindo a França) continua a crescer, na medida em que cresce a sua economia, realidade que só se interrompeu recentemente com a Grande Recessão. Mas esta convicção (e realidade que a sustenta) já existia antes da recessão, ainda que se tenha acentuado mais com a crise atual.
O crescimento econômico se distribui muito desigualmente, concentrando-se nos rendimentos superiores, graças às políticas iniciadas pelo presidente Reagan nos EUA e pela Sra. Thatcher na Grã-Bretanha, na década de 1980 do passado século. Por exemplo, nos EUA, em 1979, o 1% da população com maiores rendimentos (os super ricos) ganhava 9% de todo o rendimento do país. Em 2007, esta percentagem aumentou para 24% – a mais elevada registrada desde 1920, data do começo da Grande Depressão americana.
Mas de onde se origina tal concentração dos rendimentos e da riqueza? A resposta reside na má distribuição da riqueza criada pelo mundo do trabalho. Os dados mostram isso claramente: a produtividade do trabalhador durante o período 1973-2008 praticamente duplicou. Isto é, um trabalhador produzia por hora quase mais duas vezes em 2008 do que em 1973. O seu salário, no entanto, cresceu só 10% durante o mesmo período. Mas os diretores das grandes empresas viram crescer os seus rendimentos absurdamente (e pra manter este status quo).
Enquanto o CEO (Chief Executive Officer) de uma grande empresa recebia, em 1973, 22 vezes mais que o trabalhador médio da empresa, em 2008 esta relação subiu para 231 vezes (segundo Lawrence Mishel, The State of Working America. A report of the Economic Policy Institute. 2012, table 4.33).
Uma situação ainda mais acentuada ocorre quanto à distribuição dos elementos da propriedade que geram renda (tais como terras, ações, bônus, etc.). Entre 1983 e 2010, 5% da população com maior propriedade cresceram 83%, enquanto 80% da população viram decrescer sua propriedade em 3,2%.
Em consequência, o 1% da população mais rica, que possuía 20% de toda a riqueza em 1971, passou a ter 35% em 2007. Os 10% dos super-ricos em 2007 tinham 73% de toda a riqueza, enquanto os 40% das famílias (as classes populares) tinham só 4,2% de toda a propriedade. O fato é que a concentração de poder econômico e financeiro enfraquece enormemente a democracia até o ponto de eliminá-la em muitos países.
Esta enorme concentração dos rendimentos e da riqueza dificulta e impede o desenvolvimento democrático, pois os setores ricos e super-ricos exercem uma enorme influência e o controle dos aparelhos de Estado. Mais, estes grupos e setores desenvolvem as suas próprias redes e associações (nas quais são incorporados dirigentes políticos de todas as sensibilidades políticas), promovendo as suas ideologias, apresentando-os como os únicos aceitáveis ou respeitáveis, e as suas políticas (que favorecem os seus interesses) como as únicas possíveis.
As alianças dessas elites desempenham um papel chave nas realidades políticas. O casamento entre os super-ricos e ricos, por um lado, e os políticos conservadores e liberais (e de uma maneira crescente, algumas personagens da social-democracia), pelo outro, é uma constante nos sistemas políticos, fonte de contínua corrupção. Há múltiplos exemplos disso.
A influência da família que governa um sistema quase feudal, o Qatar, nas instituições políticas europeias não é menor. O presidente Nicolas Sarkozy deu amplas vantagens fiscais aos interesses dessa família, que lhe subvencionou as campanhas eleitorais e, mais tarde, suas atividades pós-presidenciais.
Tony Blair é um dos assessores mais bem pagos do J.P. Morgan (e é frequentemente convidado por fundações e grupos de reflexão para dar lições sobre o futuro da social-democracia).
Esta cumplicidade entre os grupos financeiros e econômicos e a classe política dominante é a característica destes tempos. A imunidade da banca, com os seus conhecidos paraísos fiscais, baseia-se precisamente nesta cumplicidade. Entre os setores público e privado, onde havia uma porta, colocou-se um arco. E dos mais triunfais.
Este sistema está numa crise profunda há décadas. O casamento do poder financeiro-econômico com o poder político é o eixo do descrédito das instituições chamadas democráticas que provoca enormes desigualdades.
Então a pergunta que não quer calar é: até quando será possível manter um sistema insustentável?”
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