Mauro Santayana, Blog: MauroSantayana
“Talvez nos conviesse, ao tratar da
corrupção política, substituir o vocábulo “ética” por substantivos mais
singelos, como retidão e correção. Ética é conceito filosófico profundo, de
definição difícil, e que se desgastou no abuso de seu emprego. É uma idéia que
está acima do exame dos escândalos atuais, que não merecem nem mesmo serem
qualificados como aéticos. Apelar para a ética, nesses casos, é como usar uma
balança de ouro para pesar cascalho sujo. Em lugar de recorrer à ética,
tratemos apenas do Código Penal.
Em todos os tempos humanos – esta é a
âncora recorrente – houve peculatários. E em todos os tempos humanos eles foram
combatidos, mesmo quando os larápios se encontravam à frente dos estados. As
sublevações populares, quaisquer fossem suas bandeiras, sempre se fizeram
contra os usurpadores do bem público.
Em todos os tempos houve – de acordo com os
historiadores – organizações criminosas, de quadrilhas de salteadores de
estradas a ocupantes do poder nacional. Daí a famosa comparação de Santo
Agostinho: a diferença entre os grupos de bandidos organizados e os estados é o
exercício da justiça. No estado em que não prevalece a justiça, os governantes
não diferem dos bandidos. No interior dos estados, como no interior de qualquer
comunidade, as duas realidades – a busca da justiça e a ação criminosa –
coexistem e se combatem. Até mesmo no interior das famílias há os que procedem
corretamente e os pérfidos.
O povo brasileiro tem sido submetido, mais
do que outros povos, ao assalto quase continuado aos bens comuns. E o maior
dano é o causado à sua dignidade. A dignidade ou, em termos mais simples, a
vergonha, é um atributo das pessoas honradas, como lembra Lupicínio Rodrigues
em sua composição mais conhecida, em que a vingança contra o opróbrio é
recomendada. Cidadãos de paises que não se destacam pela retidão de seus homens
públicos – como é o caso da Itália e da Espanha, entre outros – se esbaldam em
comentar as notícias do Brasil, por meio da rede internacional de computadores:
lá os ladrões são levados aos tribunais; aqui costumam escafeder-se pelos
corredores dos entraves processuais.
Talvez Agostinho tenha razão, se pensarmos
no que foi a política de privatizações do governo soi-disant social-democrata,
que nos infelicitou entre 1995 e 2003. Podem dar-nos todas as explicações
técnicas e econômicas, dentro da famosa “ética do capitalismo”, para justificar
a entrega das empresas estatais ao setor privado, mas não houve nada de honrado
nessa decisão. Ao contrário: a privatização só privilegiou alguns empresários,
brasileiros e estrangeiros, além de fazer, de alguns gestores do processo,
homens subitamente beneficiados por posições destacadas e altamente remuneradas
nas organizações compradoras e nas organizações financeiras que com elas se
associaram.
Há, como em todas as outras organizações
criminosas, os que agem com cautela jurídica e os lambões. Essa construtora
envolvida, se nos ativermos a uma conversação telefônica entre seu presidente e
o Sr. Carlos Cachoeira, não soube como operar no sofisticado sistema. Tampouco
souberam precaver-se o senador Torres e o vitorioso empresário tentacular
Carlos Cachoeira. Foram, além de tudo, lambões, ao se envolverem com
personagens vulgares do millieu, como o araponga Dadá.
A vulnerabilidade de Brasília à ação dos
corruptores nos leva a uma constatação constrangedora: a autonomia da capital
da República foi a mais infeliz das decisões constitucionais de 1988. A esse erro, que
violou criminosamente o pacto federativo de 1891, somaram-se outros, como os
cometidos pelo açodado afã “modernizador” do demagogo e moralista de fachada
Fernando Collor, ao alienar as residências funcionais da capital da República. Até
então, os servidores de Brasília eram recrutados em todo o país, e servir ao
poder central constituía uma vitória do mérito. Sem essa modesta vantagem – a
garantia de moradia por um aluguel moderado – a transferência para o planalto
central perdeu seu grande atrativo.
A administração pública, tanto da União,
quanto do Distrito Federal, se viu obrigada a recrutar quem se apresentasse. Os
cargos comissionados foram, de modo geral, preenchidos pelos atores políticos,
que atendiam e atendem à pressão de seus eleitores. Por outro lado, o
achatamento dos vencimentos dos servidores – a não ser em carreiras
privilegiadas – afasta os mais bem dotados para as atividades privadas, de remuneração
muito mais atraente.
Antes de 1988, Brasília era administrada
diretamente pelo poder central, mas seus prefeitos (aquinhoados pelo governo
militar com o título de governadores) tinham que ser aprovados pelo Senado - em
nome de toda a Federação – e estavam submetidos ao controle de um comitê
especial da mesma casa legislativa. Com a autonomia, Brasília passou a ser um
estado como os outros - sujeito à pressão de suas oligarquias. E como a
população, em sua maioria, é pressionada pela miséria, tende a votar com a
emoção, seguindo os demagogos de turno. Por isso, a câmara de vereadores, que
se denomina distrital, mas tem a arrogância de votar como se fosse o plenário
das Nações Unidas, é dominada por homens como os que foram filmados pelo
ex-delegado de polícia Durval Barbosa, ao receber dinheiro vivo de suas
próprias mãos, a fim de votar de acordo com os interesses do governador de
Brasília de então.
E há outros inconvenientes. Quando a
Comissão Arinos discutia a questão da autonomia, no anteprojeto de Constituição
que elaborava, Hélio Jaguaribe lembrou outra grave inconveniência da medida. Argumentou
que, no caso em que o governador local fosse inimigo do Presidente da
República, seria fácil colocar caminhões fétidos de lixo na praça dos Três
Poderes, quando o Brasil estivesse recebendo a visita de um chefe de estado
estrangeiro, para a desmoralização nacional diante do mundo. Isso sem falar no
esbulho dos outros estados da federação, que perderam, de fato, a soberania
sobre a sua capital.
A solução radical terá de ser emenda
constitucional, imediata, que devolva a administração política do Distrito
Federal ao governo da República, como era antes de 1988, e já a partir de 2015,
quando termina o atual mandato, antes que a situação se perpetue. Essa medida
radical irá romper aqueles esquemas conhecidos de desvio de recursos públicos. Não
é certo que isso venha a acabar com a corrupção, mas certamente reduzirá a sua
audácia e os seus efeitos.”
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