(Foto: Reuters | Mário Oliveira/Semcom | Nathalie Brasil/ Semcom) |
"Além de desrespeitar a vontade de 68% da população, o fim da quarentena irá trazer a lei do mais forte e mais endinheirado para a saúde pública", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia
Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia -
Angustiados por uma pandemia sem vacina nem cura conhecida, a maioria dos brasileiros e brasileiras já formulou uma opinião clara sobre as alternativas em debate.
Nada menos que 68% se dizem de acordo com o regime de quarentena -- também apoiado pela quase unanimidade de médicos e cientistas, dentro e fora do paí -- informa pesquisa Datafolha. No mesmo levantamento, um total de 79% dos entrevistados foi além e se disse favorável à punição de quem desrespeitar as regras do confinamento.
Dando sequência nos próximos dias ao plano já anunciado de esvaziar as quarentenas, que em sua opinião deveriam limitar-se à população idosa, Jair Bolsonaro ameaça mobilizar a máquina do governo e aliados mais fiéis num confronto de escala gigantesca, expressão de um esforço permanente para criar uma situação de caos e desordem no país.
Embora a situação muito dramática, as opções estão claras. Ou o Brasil consegue sobreviver com dignidade ao pior momento do novo coronavírus, quando o próprio presidente da República atua do outro lado, empenhando-se em sabotar a defesa da população.
Ou 210 milhões de brasileiros e brasileiras irão mergulhar num precipício da História, numa catástrofe capaz de envergonhar a geração que aboliu a Escravidão, em 1888, e aquela que, um século depois, em 1988, instituiu o SUS através da Constituição.
Ao empossar um darwinista social no Ministério da Saúde, Jair Bolsonaro inverteu o sinal da evolução humana e embaralhou a função social da Medicina.
Deixou claro que pretende usar todos os instrumentos a seu dispor - especialmente os mais perversos - para garantir a supremacia dos mais ricos e mais fortes.
Neste universo tenebroso, nem mesmo a combinação de preocupações legítimas e encenações para a plateia, no estilo Mandetta, podem ser admitidas.
Bolsonaro quer forçar a volta ao trabalho, ainda que essa postura tenha criado calamidades traduzidas em milhares de mortes na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos, para ficar nos casos mais chocantes.
A retomada do trabalho é uma exigência dos empresários amigos e o presidente não irá poupar esforços nessa direção.
Isso quer dizer que a guerra social contra os pobres e excluídos retoma um curso brutal, nunca visto no país.
O esforço para esvaziar o regime de quarentena construído a duras penas em boa parte dos estados brasileiros, terá o efeito previsível de multiplicar de forma exponencial o número de pessoas infectadas, que irão bater às portas dos hospitais, Unidades de Pronto Atendimento e outros locais já em situação de calamidade pública.
Ilustrando a conhecida situação da procura muito maior do que a capacidade de oferta, os telejornais dos últimos dias têm apresentado uma amostra da tragédia em gestação, na medida em que Bolsonaro utilizar a máquina do governo federal e a credibilidade que lhe resta para fazer o mal.
Pacientes abandonados, enfermarias vazias, médicos ausentes, profissionais despreparados.
É tão grotesco que é feio fechar os olhos - pois o mínimo que se pode fazer é ficar indignado.
Empregado como eufemismo técnico, o termo "colapso do sistema de saúde" aponta para uma catástrofe sem antecedentes conhecidos.
"Colapso" significa desmoronamento de uma ordem instituída para garantir o direito à vida, protegida pelo artigo 5 da Constituição - o mesmo pilar jurídico que assegura que todos são iguais perante a lei, independentemente de origem, raça ou gênero. Atacando a saúde pública, Bolsonaro volta a seu ofício habitual - atacar a cidadania. Nenhuma supresa.
Mesmo num país que passou mais de 500 anos empenhado num esforço ideológico para encobrir a miséria e a desigualdade que oprimem a maioria, numa tentativa permanente de embelezar mazelas medonhas e tornar o repugnante aceitável, o processo em curso causa vergonha e escárnio.
Num país que já possui um dos mais regressivos sistemas tributários do planeta, o Sistema Único de Saúde tem sido submetido a imensos desfalques que só prejudicaram sua capacidade de atendimento.
Em 2007 a extinção da CPMF retirou R$ 20 bilhões de seu financiamento. Uma década depois, a Lei do Teto de Gastos retirou outro tanto do caixa do SUS. Para animar a festa da posse, dias antes de vestir a faixa presidencial, Bolsonaro eliminou o Mais Médicos, retirando 6000 médicos dos bairros pobres e lugarejos distantes, e desde então um renascido surto de dengue faz companhia às primeiras vítimas da covid-19.
Retirando a população de um recolhimento que, mesmo em países desenvolvidos, até agora mostrou-se como a última barreira efetiva de proteção contra a multiplicação do novo coronavírus, o governo anuncia uma guerra perdida por antecipação. Fala em salvar a economia mas o preço será adoecer - e mesmo eliminar - grande parte da população, chamada a suportar sacrifícios gigantescos.
Envolvendo vidas humanas e muitos profissionais insubstituíveis, as baixas serão imensas, não só nas famílias de trabalhadores. Numa pandemia fora de controle, a contaminação também chega às pessoas que se imaginam acima dos riscos que atingem os patamares inferiores da pirâmide - como mostram, inclusive, os primeiros casos conhecidos no Brasil, trazidos por viajantes endinheirados que chegavam de Estados Unidos e Itália.
Com a inevitável restauração da lei do mais forte na disputa pela sobrevivência - por vagas na UTI, por um respirador e mesmo por um serviço de ambulância - é fácil compreender que a luta selvagem pela vida irá abrir um novo terreno para o país do jeitinho e a expansão, dentro da medicina, de todas as práticas corruptas que o dinheiro puder comprar.
Bolsonaro e seu ministro da Saúde estreitamente vigiado por um contra-almirante escalado para fazer um papel de tutela, estão aqui para fazer o Brasil andar para trás, nas mãos de quem sempre o comandou, com os resultados que todos conhecemos.
Uma longa e esperançosa página da história brasileira parece estar chegando ao final nas próximas semanas. Mas a experiência de povos e países mostra que é sempre tempo de denunciar e reagir, pois nenhuma sociedade está condenada a padecer em tamanha indignidade.
Alguma dúvida?
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