Celso de Mello e Bolsonaro enfim se encontram para o duelo inevitável de dois Brasis. Por Joaquim de Carvalho
Bolsonaro e Celso de MelloPor |
Quando Celso de Mello tomou posse de seu
primeiro cargo público, o de promotor de justiça, em 1970, Jair
Bolsonaro tinha 15 anos de idade e vivia no Vale do Ribeira, onde uma
intensa campanha militar caçava o capitão Carlos Lamarca, desertor do
Exército e militante de uma organização que fazia a luta política
armada.
Bolsonaro diz que ajudou os
militares com informações que poderiam levar ao esconderijo de Lamarca.
Se é verdade, esta foi a primeira derrota de Bolsonaro, que três anos
depois iniciaria a carreira militar, primeiro na Escola Preparatória de
Cadetes do Exército, depois na Academia Militar das Agulhas Negras.
Lamarca conseguiu, de maneira espetacular, vencer o cerco do Exército no Vale do Ribeira.
Enquanto isso, como promotor, Celso de
Mello ia na contramão da ditadura, dentro dos limites da legalidade.
Processava policiais acusados de abusos e se recusava a referendar as
chamadas prisões para averiguação.
Foi promotor em Cândido Mota, interior do
Estado, e Osasco, na Grande São Paulo. Chamou a atenção de lideranças
progressistas na época, como o empresário José Mindlin, secretário
estadual da Cultura, Ciência e Tecnologia, de quem ele foi assessor
jurídico.
Perdeu o cargo em razão da campanha
movida pelo jornalista Cláudio Marques, que usava sua coluna no jornal
Shopping News para dedurar servidores públicos que considerava
subversivos.
Celso de Mello voltou para seu posto no
Ministério Público e, em 1977, na inauguração do Fórum de Osasco, fez um
discurso duro contra a ditadura, ao denunciar os abusos proporcionados
pelo AI-5.
Na época, o secretário de Segurança Pública era o coronel Erasmo Dias, que o atacou publicamente.
“Há um promotor em Osasco, um tal Celso
de Mello, agindo subversivamente, colocando a população contra a
Polícia”, declarou o coronel.
Houve tentativas de persegui-lo no
Ministério Público, mas, habilidoso politicamente e respeitado pelos
pares, Celso de Mello passou incólume por essas campanhas difamatórias.
Mas ele não esquece. Anos atrás, quando
eu era repórter de Veja, ele tocou nesse assunto numa conversa informal,
ao condenar a ditadura e se apresentar como um democrata radical.
Foi assessor jurídico do deputado estadual Flávio Bierrembach, do PMDB.
Bierrembach foi um dos líderes da
campanha pela anistia e ajudou o jurista Gofredo da Silva Telles a
redigir a Carta aos Brasileiros, em 1977, marco da luta pela retomada da
democracia. Vale a pena registrar um trecho da carta:
Chamamos de Ditadura o regime em que o
Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a
Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo.
Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o
regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga
seus adversários e proíbe a contestação das razões em que ela se procura
fundar. Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós. Como
cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma
vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a
Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia. Os
governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e
não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os
ombros do povo, um manto de irrisão.
Alguns anos depois, a ditadura acabou,
mas parte do entulho autoritário permaneceu na sociedade. Um deles
atendia pelo nome de Jair Bolsonaro, que encontrou na revista Veja a
oportunidade de minar a recém-nascida Nova República.
Enquanto Bolsonaro publicava o artigo em
que atacava o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, a pretexto
de reivindicação salarial, Celso de Mello ocupava o posto de assessor
jurídico no Gabinete Civil da Presidência da República.
Integrou a grupo presidido pelo
procurador-geral, Sepúlveda Pertence, responsável pela elaboração do
anteprojeto da Lei Orgânica do Ministério Público da União.
Mais tarde, foi secretário geral da Consultoria Geral da República — atual Advocacia Geral da União —, na gestão de Saulo Ramos.
Enquanto Celso de Mello trabalhava no
redesenho institucional do país, de olho no futuro da democracia
brasileira, Bolsonaro conspirava pela instabilidade do regime, a serviço
da chamada linha dura dos militares, insatisfeita com o fim da
ditadura.
Ou seja, um representava o passado, o atraso; o outro, o futuro e progresso.
Na época, Bolsonaro ainda ocupou o
noticiário por supostamente ter elaborado um plano terrorista para
chamar a atenção às reivindicações salariais do seu grupo.
Em 1988, Bolsonaro conseguiu reverter a
expulsão do Exército, em um julgamento no qual um dos ministros alertou
que a manutenção dele nas Forças Armadas representava elevado risco.
“Um exame mais aprofundado leva este capitão às profundezas do inferno de Dante”, declarou José Luiz Clerot, em sessão gravada.
Um ano depois, Celso de Mello tomou posse
de uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, indicado por José Sarney e
aprovado por 47 votos no Senado — apenas três senadores votaram contra.
Na mesma época, eleito vereador no Rio de Janeiro, Bolsonaro se ocupava de provocar discórdia nos quartéis.
Tanto que, em 1991, já eleito deputado
federal, ele teve sua entrada proibida nas instalações militares, por
ordem do ministro do Exército, general Carlos Tinoco.
A trajetória de Bolsonaro se cruza
diretamente com a de Celso de Mello neste segundo ano do governo de
extrema direita, que representa tudo aquilo que Celso de Mello, ao longo
da vida, combateu.
O decano é dez anos mais velho que
Bolsonaro, mas ambos pertencem à mesma geração, mas, como se viu acima,
nunca estiveram do mesmo lado.
Hoje, Celso de Mello divulgou nota para
condenar Bolsonaro pela estímulo a manifestações contra o Congresso
Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Essa gravíssima conclamação, se
realmente confirmada, revela a face sombria de um presidente da
República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o
sentido fundamental da separação de poderes, que demonstra uma visão
indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo
ato, de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República, traduz
gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio
democrático!!!”, afirmou o decano.
“O presidente da República, qualquer que
ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena
de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia
político-jurídica da Constituição e das leis da República!”,
acrescentou.
Celso de Mello está a dez meses da sua aposentadoria compulsória — por idade —, pois completará 75 anos em novembro.
Ao presidente da república, caberá
indicar o sucessor de Celso de Mello. Bolsonaro já disse que gostaria de
colocar no STF alguém “terrivelmente evangélico”.
Se conseguir emplacar o ministro, dará o
primeiro passo para o redesenho institucional da corte suprema, um salto
em direção a um passado sombrio, sem a garantia de direitos.
Seria terrível para a democracia no Brasil. Mas há como evitar.
Até novembro, Bolsonaro poderá não ser
mais presidente da república, na hipótese de que o Congresso o puna por
atentar contra a Constituição.
Se ainda estiver no cargo, espera-se que o Senado rejeite o nome indicado por ele.
Afinal, Bolsonaro é um uma pessoa que
“demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo
cargo que exerce”. Uma pessoa assim não deve deixar no STF as suas
digitais.
Celso de Mello e Bolsonaro representam dois brasis.
O de Celso de Mello pode não ser
perfeito, mas é muito melhor do que o de Bolsonaro, a expressão do
atraso, da truculência e da ignorância.
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