por Fernando Brito, Tijolaço -
Reproduzo o artigo do professor (e promotor aposentado) Lenio Streck, no Conjur.
Embora jurídico, é leve, bem humorado, sem deixar de ser preciso.
Nada era novidade, mas agora é materialidade.
A prova das convicções a que todos os indícios levavam.
Lavajatogate: Com hackers ou X9,
o Direito nunca mais será o mesmo!
Lenio Luiz Streck, no Conjur
Passadas 48 horas da divulgação dos
diálogos entre procuradores da “lava jato” e o ex-juiz Sergio Moro,
algumas questões parecem estar consensuadas:
– Primeiro, que as conversas configuram relações promíscuas e ilegais entre juiz e membros do Ministério Público;
– Segundo, houve a violação de comezinhos princípios éticos e jurídicos acerca do devido processo legal;
– Terceiro, ficou claro que a defesa
foi feita de trouxa pelo juiz e pelo MP, porque combinaram esquema
tático sem que essa imaginasse o que estava ocorrendo (a defesa pediu
várias vezes a suspeição do juiz);
– Quarto, o juiz visivelmente atuou
na acusação, violando o princípio acusatório; o juiz chegou a sugerir a
oitiva de uma testemunha e cobrou mais operações policiais; como diz o
jornalista Ranier Bragon, as conversas não dão margem a dúvida: o juiz
tomou lado (aqui).
– Quinto, o conteúdo dos diálogos não foi negado (falarei abaixo sobre sua [i]licitude).
Bom, se isso não é parcialidade,
tanto do juiz como do MP, então teremos que trocar o nome das coisas.
Simples assim. Podem Dallagnol e Moro tentarem se explicar. Mas a rosa
não perde seu perfume se a chamarmos de cravo, como em Romeu e Julieta
(Shakespeare).
Fosse na Alemanha, os protagonistas
estariam sujeitos ao artigo 339 do Código Penal, aqui traduzido
livremente (lá eles chamam a isso de Rechtsbeugung – prevaricação):
Direcionar, juiz, promotor ou
qualquer outro funcionário público ou juiz arbitral, o Direito para
decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes.
Pena: detenção de 1 a 5 anos, e multa.
Leiam com vagar o dispositivo acima. Tomem um café e voltem ao texto.
Vamos a algumas explicações. Como
garantista, vamos admitir que os diálogos sejam frutos de prova ilícita
(hackeamento). Então Dallagnol e os demais escapam de processo judicial.
Mas é consenso no Direito brasileiro que ninguém pode ser condenado com
base em prova ilícita. Porém, o réu pode ser beneficiado por ela.
Já cedo da manhã de segunda, no calor
dos acontecimentos, expliquei para vários sites e rádios essa questão,
lembrando de um exemplo de meu professor de processo penal, em 1830: se
uma carta for aberta criminosamente (violação de correspondência) e nela
se descobrir que um inocente está pagando por um culpado, o inocente
poderá se beneficiar dessa prova ilícita. Tenho isso muito claro. Mas,
por garantia, encaminho os leitores para o comentário de Araken de Assis
e Carlos A. Molinaro ao art. 5, LVI, da CF, no livro Comentários a
Constituição do Brasil (In: MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo
Wolfgang; CANOTILHO, J.J.; STRECK, L.L.; LEONCY, Léo Ferreira (coord.),
São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 470). Eles esgotam a matéria.
Registro, ainda, que, na opinião do
perito Fabio Malini, professor do laboratório de estudos sobre imagem e
Cybercultura da Ufes, dificilmente os diálogos divulgados são produto de
hackeamento. Para ele, a causa pode ter sido algo simples: descuido dos
usuários. E eu acrescento: pode ser produto de um X9. O professor
lembra, ainda, que os fatos indicam que não foi ativado o modo de
destruição das mensagens do Telegram. Enfim, quando todos dizem que foi
hackeamento, pode tudo isso, todavia, ser produto de vazamento interno.
Nestas alturas, em termos de garantias, Dallagnol deve estar torcendo
que seja hackeamento, porque essa prova não pode ser usada,
juridicamente, contra ele e os demais. A ver, nesse ponto.
Aproveito para lembrar, também, que
fui o primeiro e único (ao que sei) que avisou que o item 9 do acórdão
que condenou o ex-presidente Lula continha algo muito estranho:
“Não é razoável exigir-se isenção dos
Procuradores da República, que promovem a ação penal. A construção de
uma tese acusatória – procedente ou não -, ainda que possa gerar
desconforto ao acusado, não contamina a atuação ministerial.” (TRF-4 –
ACR: 50465129420164047000 PR 5046512-94.2016.4.04.7000)
O sistema de justiça brasileiro está
em uma encruzilhada. Os fins justificam os meios? Dallagnol, em vídeo,
diz que não. Mas, lendo os diálogos, a prática do MPF no caso mostra
claramente que, sim, os fins justifica(ra)m os meios. De uma vez por
todas: um juiz não se associa com o órgão acusador.
Imaginemos o contrário: o vazamento
de conversas do juiz com o advogado de defesa e depois o réu é
absolvido. O que seria isso? Cairia a casa. Mas como é conversa de juiz
com o MP, isso é visto como “normal”, como sustentam Dallagnol e Moro.
Como o sistema de justiça reagirá a isso?
Ah, e, segundo Deltan, não há
parcialidade, uma vez que “54 pessoas acusadas pelo Ministério Público
foram absolvidas pelo ex-juiz federal Sergio Moro”. Uau. Essa é a prova
de imparcialidade? Primeiro, não significa nada. Segundo, e concedendo
para fins de argumentação que signifique, de imparcialidade em x
processos não se deriva imparcialidade em y processos. Simples.
Além do mais, veja-se que nos
diálogos entre os procuradores, Dallagnol admite a fragilidade da prova
do caso do tríplex. Admite também que a prova é indireta, citando a mim e
a Reinaldo Azevedo:
“Ainda, como a prova é indireta,
‘juristas’ como Lenio Streck e Reinaldo Azevedo falam de falta de
provas. Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página for
virada para a próxima fase, com o eventual recebimento da denúncia, em
que talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar
esses pontos.”
Sim, Deltan. Vou desconsiderar as
aspas. Reinaldo já falou – e bem – sobre isso. Vamos ao ponto. Tenho
esse hábito de chamar as coisas pelos seus nomes. Diferentemente do
imaginário Lava Jato, que não sabe diferenciar juiz e parte, eu sei que
não existe linguagem privada. Não adianta tentar criar uma novilíngua
exclusiva da República de Curitiba: os critérios para atribuição de
significado e sentido são externos. Linguagem pública (Wittgenstein).
Quando falta prova… falta prova. E haverá juristas, com aspas ou sem
aspas, para dizer que falta prova.
O que veio a público com as matérias
do Intercept Brasil é nada mais que aquilo que eu já venho denunciando
de há muito, agora trazido às claras. Sob o pretexto da luta contra a
corrupção, trocaram o Direito pela política. Na espécie, ignoraram as
lições mais elementares que qualquer aluno de graduação aprende em
Introdução ao Direito e colocou acima da Constituição, na famosa
pirâmide de Kelsen (que nem era do Kelsen) , os procuradores – e nesse
plural, por óbvio, está Sergio Moro; e a culpa não é minha. Quem decidiu
incluir a si próprio nessa posição foi ele ao optar por atuar como
parte. Ah, e falando em Kelsen, parece que ele tinha razão, na sua
porção decisionista (8º Capítulo da TPD- Teoria Pura do Direito):
decisão judicial como ato de vontade (de poder).
Atropelaram garantias, atropelaram a
Constituição, atropelaram a lei. E vejam, a crítica que aqui faço é
muito provavelmente a mais fácil que já tive de escrever. Está tudo ali.
Escrito. E o que está escrito importa, por mais que se negue as
evidências. Lembro de um acusado de ter furtado um porco, na minha
primeira comarca. Disse a autoridade policial que ele vinha carregando o
porco nas costas. Indagado sobre o que fazia o porco na sua “cacunda”, o
réu respondeu: “Qual porco? Quem colocou esse bicho nas minhas costas?”
Na especificidade, o réu não se ajudou muito.
Por último, lembro que Dallagnol e
Moro não podem se queixar, uma vez que o primeiro defende com ardor o
pacote das dez medidas, onde consta que notícias anônimas podem ser
usadas para iniciar investigação, porque o que importa é “levar atos
corruptos ao conhecimento do cidadão” (veja-se: eu não concordo com
isso; quem diz isso é Dallagnol).
Esse ponto é bem lembrado pelo
advogado Gamil Hireche (aqui). Perfeito. Aqui, no caso, nem há
anonimato, pois não?
Já Moro sempre disse que ninguém está
acima da lei e, no programa do Bial, justificou o vazamento das
conversas de Lula com Dilma deste modo: “O problema ali não era a
captação do diálogo e a divulgação do diálogo, era o diálogo em si, o
conteúdo do diálogo, que era uma ação visando burlar a justiça. Este era
o ponto.”. Pois é.
Tudo muito simples, pois não? E por
que, ainda com todos esses elementos, parte da comunidade jurídica
aplaude as ilicitudes? A resposta pode ser esta: Por causa do tipo de
ensino jurídico e do desprezo dessa parcela de pessoas por aquilo que
lhe dá sustento: o Direito. Fossem médicos, fariam passeata contra os
antibióticos e o uso do raio laser nas cirurgias. Motivo: salva muita
gente.
O sintoma: Precisava mesmo de tudo
isso, de todo esse tempo para que o estouro acontecesse? Precisava que
viesse o Glenn Greenwald jogar isso na nossa cara para que acordássemos
enquanto comunidade jurídica? Já estava tudo ali. Talvez não estivesse
dito… mas o não dito já existia. A paralipse [Nota do Tijolaço: figura de retórica pela qual se finge que não quer tratar de um assunto, mas vai falando dele] já tinha ficado muito clara naquele Power Point do Dallagnol.
Mas que seja. Que tenhamos coragem de, finalmente, encarar as coisas como elas são e chama-las pelos nomes que elas têm.
Odeio dizer que eu avisei, mas… eu
avisei. Não sei qual será o resultado de tudo isso, mas uma coisa é
certa: o Direito nunca mais será o mesmo em Pindorama.
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