Os cobradores. Xico Sá, sobre os “arrastões”


Fernando Brito, Tijolaço

"Um amigo envia um artigo idiota do Rodrigo Constantino, da Veja – acho que cometi um pleonasmo, será? – colocando em Leonel Brizola, morto há 11 anos e fora do Governo há 21, a “culpa” pelos “arrastões”  nas praias da Zona Sul.

Dispensei-me de ler, porque não vejo arruaças como “insurreições”, embora ache que a polícia deve, sim, cuidar para que não ocorram, mas que só mentes primárias pode reduzir a um simples problema “de segurança”.

Prefiro ler o artigo inteligente e bem escrito de Xico Sá, no El Pais, o qual ajudo a difundir, agora que a Folha de S. Paulo dispensou um dos textos mais saborosos do jornalismo, hoje.

E de quebra, ao final, ainda coloco o tema, tão bem sacado pelo Xico, do velho e sempre lindo Nélson Cavaquinho.



Tem morador da cidade do Rio de Janeiro, ainda sob o pânico dos arrastões, torcendo para que não dê praia neste final de semana… No que me faz lembrar, por associação automática, no título do best-seller O Sol é para todos, de Harper Lee, sobre injustiça, racismo, separatismo etc.

Não adianta tapar o sol com a peneira, o sol por testemunha, o sol também se levanta… Sigo viajando nos títulos dos livros que tentam explicar o mundo e as particularidades.

Donde o cobrador, no sentido do conto homônimo de Rubem Fonseca publicado em 1979, é um sujeito que toca o terror na cidade do Rio de Janeiro com a cólera de quem busca tudo que lhe devem na vida. Não cobra no varejo; sim pelo conjunto da obra. Ele parece cobrar, além muito além de grana e quinquilharias consumistas, atenção, afeto, amor, sexo…

Ele, o bruto, cobra que lhe arranque um dos últimos dentes da boca, cobra caro a ira que tem da madame da zona sul, ele não suporta o playboy que sai para jogar tênis todo de branco, ele dá porrada em um mendigo cego cujo tilintar das moedas na cuia de alumínio o faz perder a paciência…

“Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.” Ele explode diante de um executivo que, para aliviar a barra pesada, apela para um sentimento humano tipo “homem que é homem…”

Assim, ele descreve este mesmo devedor da sociedade: “(…) deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.”

E segue com uma vida a cobrar, nesta obra-prima que antecipa, em crueldade, o recente filme argentino Relatos Selvagens: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”, enumera o homem revoltado. “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!”
Papai Noel que se cuide no Natal. O cobrador jura que irá acertar as contas. O bom velhinho é um dos seus maiores devedores.“A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.”

Feios, sujos e malvados

O eterno retorno dos arrastões nas praias cariocas me fez lembrar uma multiplicação, em versão infanto-juvenil, dos cobradores de Rubem Fonseca. Como os gremlins do cinema americano, eles se multiplicaram nas areias e calçadas de Ipanema e Copacabana. Cesse tudo que a Bossa Nova canta, o barquinho vira, o pancadão do funk se alevanta.

Os novos cobradores não pouparam ninguém do alvoroço. Nem moradores de rua e muitos menos os passageiros de morros e arrabaldes que chegaram às praias nos mesmos ônibus. Não é uma cobrança obrigatoriamente de classe. É um redemoinho dos “feios, sujos e malvados” –vide o filme italiano de Ettore Scola, da mesma época de O cobrador brasileiro– que assusta os moradores da zona sul pelo menos há três décadas.

Repare na reportagem que publicava no dia 04 /11/1984, no Jornal do Brasil, o cronista Joaquim Ferreira dos Santos:

“Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só: ´Que gente feia, hein?!´ (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D’Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus).”

Os novos cobradores apresentam mais uma vez uma velha dívida. Não que haja assim um movimento organizado como os crimes da política oficial. Tampouco uma chantagem de peemedebistas loucos para vampirizar o Ministério da Saúde e o país, sob o olhar complacente de uma presidenta que sangra em público –como prometeram os caciques do PSDB.

O sequestro da Primavera

Os moleques, entre um jacaré e outro nas ondas do Arpoador, arrepiam com o sol por testemunha. No derradeiro final de semana conseguiram sequestrar a Primavera e fazer o Rio saltar direto para o veraneio dos Trópicos.
Eles cobram com paus e pedras. Em alguns momentos parecem se divertir, perversamente, com o pânico no balneário; há também um quê de aventura e adrenalina nas galeras, como no sujeito solitário de Rubem Fonseca –pelo menos até encontrar a Ana, amante e cúmplice.

Estão devendo tudo à esta molecada, inclusive explicações sobre as mortes de meninos como eles, abatidos pela polícia como bichos. A última vítima foi enterrada nesta quinta, 24 de setembro, sob protesto no Cemitério do Caju:

Herinaldo Vinícius de Santana, 11 anos, assassinado com um tiro na cabeça na zona norte do Rio. Aqui se deve, aqui não se paga a esse tipo de gente. Os cobradores, personagens literários ou não, sabem que ninguém baterá nem uma lata por eles em uma geografia carioca altamente paneleira.
São os estranhos e proibidões no paraíso.

Tem uma turma aqui na vizinhança da minha casa, ai de ti Copacabana, torcendo para que não dê praia neste final de semana. Tem outro grupo, conforme se vê nas redes sociais e no zunzunzumdo bairro, se preparando para reagir aos “invasores bárbaros”, como já ocorreu em algumas ocasiões.

Resta samplear, ingenuamente, o compositor Nelson Cavaquinho: “É o juízo final/ A história do bem e do mal/Quero ter olhos pra ver/ A maldade desaparecer… // O sol (…)”
 

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