O ministro bolivariano


Frederico de Almeida, Justificando

"Após um ano e cinco meses impedindo a continuidade do julgamento de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB contra o financiamento empresarial de campanha, o ministro do STF Gilmar Mendes finalmente devolveu os autos que havia pedido em vistas e proferiu seu voto.

Se a situação de tão longo pedido de visitas já era absurda por si só, o conteúdo e a forma como Mendes proferiu seu voto só tornou ainda mais condenável sua atuação nesse caso. Valorizado por sua suposta competência técnico–jurídica em direito constitucional, e tendo proferido um voto muito bem fundamentado há pouco mais de duas semanas na ação sobre a inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo próprio, Mendes proferiu na ação sobre o financiamento de campanhas um voto de cinco horas impregnado de senso comum, contrariando frontalmente os dados de pesquisas sobre corrupção e financiamento eleitoral, e fazendo acusações inaceitáveis contra partidos e entidades favoráveis à declaração de inconstitucionalidade.

Mais do que isso, foi um voto partidário. Mendes resumiu o problema da corrupção ligada ao financiamento eleitoral a uma prática exclusiva do PT, e associou os interesses na declaração de inconstitucionalidade aos interesses do PT. Com isso, desrespeitou os interesses e o trabalho da OAB, autora da ação, de pesquisadores do tema, de entidades da sociedade civil e mesmo de partidos e políticos com longo histórico de crítica ao financiamento empresarial e à corrupção política. Quando o presidente do STF concedeu a palavra ao representante da OAB, que expressaria sua contrariedade às insinuações de Mendes, o ministro simplesmente abandonou a sessão.

Mendes vinha justificando sua resistência em proferir voto sobre o tema com o argumento de que essa era uma questão a ser decidida pelo Legislativo e não pelo Judiciário. Estou de acordo com ele, e acrescento: o argumento da OAB de que o financiamento empresarial rompe com a igualdade eleitoral da regra “um homem, um voto” me parece até um tanto exagerado em termos lógicos e jurídicos. A questão, em minha opinião, não deveria ser decidida com base em um argumento formal de constitucionalidade, mas sim em um juízo político de conveniência sobre as relações entre poder econômico e democracia. Mas o fato é que havia uma ação proposta perante o STF, que não pode se furtar de decidí-la; para o bem ou para o mal, o STF não possui o mecanismo que permite à Suprema Corte dos EUA decidir sobre quais casos decidir. Pior ainda: quando Mendes pediu vistas do processo, a ação já estava em julgamento e já havia maioria formada entre os ministros pela inconstitucionalidade do financiamento empresarial de campanhas.

Ficou bastante claro que Mendes segurou a ação consigo até o Congresso Nacional decidir a questão, para só então devolvê-la ao plenário. Em seu voto de ontem ele podia simplesmente dizer que a questão perdeu objeto, uma vez que a recente decisão da Câmara dos Deputados estabeleceu nova regulamentação constitucional. Mas preferiu ir além, fazendo de seu voto um discurso político no pior sentido do termo, e de seu destempero e sua saída abrupta da sessão mais uma manobra para ganhar tempo, na esperança presunçosa e autoritariamente expressa de reverter a maioria já existente entre seus pares.

Logo após as eleições de 2014, Mendes manifestou ao jornal Folha de São Paulo sua preocupação em relação à possibilidade do STF se converter em uma “corte bolivariana”. Referia-se, de imediato, à possibilidade da presidenta Dilma Rousseff nomear mais ministros do STF em seu segundo mandato, compondo então uma “maioria” do PT na corte, juntamente com os demais juízes nomeados anteriormente por ela e pelo presidente Lula; mas sua referência mediata era ao regime venezuelano inaugurado por Hugo Chávez, caracterizado, entre outros aspectos, pelo controle político do Executivo sobre as demais instituições e pela perseguição judicial de adversários políticos.

O lamentável desenrolar da ação de inconstitucionalidade do financiamento empresarial de campanhas nos leva a crer que a profecia de Mendes se concretizou: não pela mão de um Executivo de esquerda, mas sim pela obra individual de um dos membros do próprio STF, que de maneira autoritária e destemperada partidariza sua atuação como ministro e instrumentaliza o direito para praticar sua oposição a adversários políticos, sob o silêncio complacente e atônito de seus colegas e aplausos de lideranças do Legislativo. Aliás, essa parece ser a maior ironia do atual momento político: após tanto falar em “bolivarianismo” em sua contestação de um governo de esquerda fracamente reformista e aliado à direita, é a oposição ao PT que está transformando o Brasil na Venezuela que temia, com o conflito político descambando para o ódio e a violência, instabilidade institucional duradoura e instrumentalização das regras do jogo para objetivo partidários.

*Frederico de Almeida é Bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

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