Por conta da crise, o programa Minha Casa Minha Vida corre o risco de não chegar à sua terceira fase |
Carlos Drummond, CartaCapital
A situação era ruim e ficou
pior, mas nenhuma das consequências dos últimos dias era imprevisível
diante da fraqueza da economia, das decisões erradas do governo e da
turbulência política. Na sexta-feira 4, a pesquisa semanal do Banco Central com as instituições financeiras identificou uma nova queda da previsão do PIB em 2015, dos 2,26% negativos apurados uma semana antes para -2,44%. Na quarta-feira 9, a Standard & Poor’s, agência de classificação de riscos, anunciou o rebaixamento da nota do Brasil,
de BBB-, o menor grau de recomendação de investimento, para BB+, o
primeiro do patamar especulativo.
Apesar da credibilidade abalada pela
atribuição de notas favoráveis a bancos quebrados na crise de 2008,
agências como a S&P são levadas em conta pelo setor financeiro e o
rebaixamento deve resultar em restrição e encarecimento do crédito para o
País, e menor atratividade aos investimentos estrangeiros.
Na sua justificativa, a S&P destacou
que o crescimento dos desafios políticos afeta a capacidade de o governo
submeter ao Congresso um Orçamento para 2016 “consistente com o ajuste fiscal”.
O Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2016 foi encaminhado ao
Senado, em 31 de agosto, pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa,
com previsão de um déficit de 30,5 bilhões de reais, ou 0,5% do PIB. Dois dias mais tarde, após uma reunião de alguns grandes empresários com o ministro Joaquim Levy, da Fazenda, o governo retrocedeu para a definição anterior, de obter um superávit de 0,7% no próximo ano.
Antes do anúncio feito pelo governo na segunda-feira 14, com propostas de aumento de receitas e de corte de gastos,
tornou-se mais acirrada a discussão sobre o tema. Alguns protagonistas
abandonaram o discurso aparentemente neutro em favor da austeridade e
passaram a apontar quem ficará com a conta.
O relator do Orçamento, deputado Ricardo
Barros, do PP, admitiu a possibilidade de cortes no Bolsa Família, um
programa com 51,2 milhões de beneficiários. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha,
do PMDB, considerou inevitável reduzir os programas sociais e citou o
Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies, com 2 milhões de estudantes
incluídos. O ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, confirmara um
corte no programa de habitações populares Minha Casa Minha Vida, que
engloba 2,17 milhões de unidades entregues e 1,69 milhão contratadas até
março.
O alvo principal, nunca assumido, da
artilharia contra os gastos sociais do governo, dissimulada por apelos à
responsabilidade fiscal e ao equilíbrio orçamentário, são direitos
garantidos pela Constituição de 1988, base da concessão de benefícios
rotulada como irresponsável no caso dos governos a partir de 2002.
Interpretações à parte, não se trata de exclusividade de uma corrente
política. Os gastos sociais aumentam de modo consistente desde 1998,
mostram os economistas Sérgio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair no
trabalho Flexibilização Fiscal: Novas evidências e desafios, a ser publicado em breve pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A média de crescimento real
da despesa primária pouco variou no período e isso “evidencia não só uma
elevada rigidez da despesa, mas certa inércia, associada principalmente
aos gastos sociais e, mais precisamente, aos benefícios sociais
previdenciários e assistenciais”, anotam os autores. A tendência é
crescer acima do PIB “tanto mais quanto menor for o crescimento da
economia”. Há um movimento de expansão do gasto social que “independe de
viés político-partidário” e reflete as pressões em favor de
transferências redistributivas e da “consolidação de um Estado de
Bem-estar Social com ampliação do acesso a serviços sociais básicos pela
população”.
A situação está longe de ser uma
singularidade brasileira. As pressões por proteção social governamental
crescem desde os anos 1980 no mundo e se intensificaram nas últimas duas
décadas na medida do enfraquecimento financeiro das nações, inclusive
nos países avançados, devido à renúncia da tributação dos mais ricos,
mostra o economista alemão Wolfgang Streek: “A crise financeira do
Estado não se deve ao fato de a massa da população, induzida por um
excesso de democracia, ter retirado demasiado para si dos cofres
públicos. Ao contrário, os maiores beneficiários da economia capitalista
pagaram demasiado pouco, aliás, cada vez menos, aos cofres públicos”.
Se houve uma “inflação de reivindicações”, que levou a um déficit
estrutural das finanças públicas, este registrou-se nas classes altas,
cujos rendimentos e patrimônios aumentaram rapidamente nos últimos 20
anos, alimentados por benefícios tributários.
O alerta dos economistas sobre a tendência de aumento dos
gastos sociais e a dificuldade de financiá-los põe em xeque afirmações
como aquela do presidente do Senado, Renan Calheiros, a respeito da
necessidade de se discutir “primeiro os cortes, depois as receitas”. Do
lado do aumento das receitas, o governo cogitou a reintrodução da Cide, e
a criação de uma quarta faixa de alíquotas do Imposto de Renda, entre
30% e 35%, para os indivíduos de renda mais alta, segundo anunciou Levy
na terça-feira 8. Outro recurso seria elevar o imposto pago por donos de
empresas.
Havia preocupações, no
Planalto e no Congresso, em relação a um reajuste da Cide, dado o seu
impacto inflacionário. Concluiu-se que entre recompor minimamente a
força econômica do Estado com risco de aumentar a inflação e agravar a
recessão o governo parece preferir a última alternativa. Quanto à
proposta de uma nova faixa do IR, o cuidado de assessores presidenciais
em esclarecer que se tratava de uma posição ainda não fechada indicava a
baixa disposição de Brasília em patrocinar medidas para reduzir a
injustiça do sistema tributário, um dos mais regressivos do mundo.
Reforça ainda a impressão de o governo não ter uma
estratégia para reequilibrar a economia e encaminhar a retomada do
crescimento, como transpareceu nos avanços e recuos em relação à
possibilidade de reintrodução da CPMF, o chamado “imposto do cheque”, e à
proposta orçamentária para 2016.
A presidenta Dilma Rousseff, de quem se
poderia esperar, por força do ofício, o papel de fiel da balança, dias
depois de dizer que cortou “tudo o que poderia ser cortado” no Orçamento
e que o País não pode “voltar atrás” e perder programas sociais,
defendeu, no discurso de 7 de Setembro, a adoção de “remédios amargos”. O
oposto fez Lula no dia seguinte, durante uma visita ao presidente do
Paraguai, Horácio Cartes. Para o ex-presidente, “os gastos com programas
sociais não devem ser deixados de lado no Orçamento”. Outros países
“ficaram mais pobres com ajustes fiscais muito fortes”.
Não ficar preso à visão tradicional poderia ser um bom
começo para enfrentar a questão do Orçamento. O economista Paulo Kliass,
entre outros, considera a existência ou não do déficit primário um
falso debate. “A verdadeira questão é como o governo balanceará o
Orçamento”. Os conceitos de déficit e superávit nominais foram um
“artifício criado pelo establishment financeiro internacional, a
partir da década de 1980”, na crise da dívida externa dos países em
desenvolvimento, para dar maior grau de coerção ao pagamento dos juros e
do serviço da dívida. Uma política só será responsável, segundo
definiram os representantes do sistema financeiro, se apresentar um
saldo de receitas superior às despesas vinculadas a investimentos,
programas sociais, pagamento de pessoal e semelhantes. O pagamento dos
juros e serviços da dívida pública não entra nessa conta. “Assim, o
governo é forçado a realizar um esforço fiscal enorme para obter sobras
de recursos para cobrir as despesas financeiras. Uma inversão total de
prioridades.”
Alguns números do Tesouro Nacional ilustram a inversão de
prioridades criticada por Kliass. O pagamento mensal médio de juros da
dívida pública para os seus credores, constituídos em mais de 90% por
instituições financeiras, supera 31 bilhões de reais mensais. O déficit
previsto na proposta orçamentária para o próximo ano é de 30,5 bilhões,
equivalentes a um mês de pagamento de juros da dívida pelo governo.
*Uma versão desta reportagem foi publicada
originalmente na edição 867 de CartaCapital, com o título "A disputa
pela civilização"
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