"Belluzzo
adverte: 'Se o Estado age como o desempregado, que corta tudo, a
recessão se aprofunda. Sem crescer as coisas ficam muito complicadas no
capitalismo'.
Saul Leblon, Carta Maior
A negociação de um novo ministério em que o
PMDB passa a deter fatias consideráveis do orçamento e do poder --
imediatamente, não na arriscada perspectiva de um golpe— deixou o
conservadorismo entre estupefato e irritadiço.
O
ex-presidente Fenando Henrique Cardoso apressou-se em sentenciar seu
douto entendimento sobre mais essa lâmina que cruza a noite de golpes,
autogolpes e contragolpes em que se transformou a luta pelo poder no
país.
‘Dilma se aliou ao demônio’, esbravejou, passando recibo.
Estamos
falando do personagem cujo governo foi uma clássica coabitação com
demos de carne e osso que há séculos espetam o tridente no lombo da
população brasileira.
O muxoxo expressa mais que a ressentida perda da exclusividade.
Comodoros
da esquadra golpista, em cujos porões se replica o balé de punhais,
agora entre Aécio, Serra, Alckmin etc-- temem que a reacomodação
ministerial abra uma janela de tempo e oxigênio no labirinto da crise
econômica.
E ponha tudo a perder.
Opera-se
na estreita pinguela que interliga o tudo ou nada em meio à densa noite
de azeviche que desce sobre a história brasileira.
Encadear
à aposta ministerial uma iniciativa capaz de reverter a assombração
recessiva é a única chance do lado do governo, antes que o parafuso
econômico vare do outro lado.
Colonizado pela circularidade do ajuste, o senso comum já reage à insuficiência dos cortes pedindo outros.
Uma
espécie de suicídio induzido pela dedução do Estado a partir da
contabilidade doméstica asfixia o debate das ‘possibilidades econômicas
dos nossos netos’, para emprestar um título inspirado de Keynes,
utilizado na chamada desta nota.
‘E, todavia, são coisas muito distintas’, ensina a paciência jesuítica do economista brasileiro Luiz Gonzaga Belluzzo.
Aos
repórteres que o procuram cheios de ardor pela tesoura ortodoxa, ele
adverte: ‘Se o Estado age como o desempregado, que corta tudo, a
economia naufraga; a recessão se aprofunda’. E quase num desabafo diante
da resistência do material a ser desasnado: ‘Sem crescimento é
inviável. Sem crescer, no capitalismo, as coisas começam a ficam muito
complicadas’.
As
coisas estão ficando muito complicadas no Brasil, onde níveis de
endividamento pessoal, privado e público, em moeda local e estrangeira,
estão sendo desguarnecidos dos fluxos de receita que os mantém
solváveis.
Como num efeito dominó, as distintas peças da economia vão caindo.
Quem pode deter o fluxo?
A
intuição atilada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva soou o
sinal amarelo: o país precisa urgentemente de uma agenda pós-ajuste.
Por onde começar?
O programa do golpe não hesita.
Ademais
do arrocho inclemente, as ‘complicações’ decorrentes da purga recessiva
recomendam concluir o trabalho iniciado pelo PSDB nos seus oito anos de
poder.
A
ex-diretora do programa de desestatização do BNDES então, Elena Landau,
deu a largada em artigo de 17/09, publicado na Folha, cujo título é
imperativo -- ‘É hora de privatizar’.
A
tucana que saiu do BNDES para o banco Oportunity, onde –junto com o
ex-marido, e ex-presidente do BB no governo FHC, Pérsio Arida-- foi
assessorar clientes de Daniel Dantas a adquirir empresas públicas por
ela privatizadas, dobra a aposta:
‘A
crise abre oportunidade para nova rodada de privatizações... A lista de
ativos federais, estaduais e municipais a serem vendidos pode e deve
ser ampliada. Some-se ainda o plano de desinvestimento da Petrobrás e os
valores duplicam’.
A abrangência do desenvolvimento e a sorte das gerações futuras estão com o destino ameaçado.
A
peça-chave da segunda onda de alienação patrimonial é formada pelas
maiores reservas de petróleo descobertas e inteiramente mapeadas no
século XXI.
Pré-sal significa dinheiro na mão.
Em quantidades oceânicas.
Ainda
que a cotação do barril se estabilize em US$ 55, a densidade energética
imbatível e a rentabilidade líquida e certa das reservas brasileiras,
fazem desse patrimônio um dos alvos mais cobiçados ativos da guerra
econômica global.
Serra –‘ o maior entusiasta da venda da Vale’, já disse FHC— é o general de campo dessa cobiça incansável.
O
assalto ganha vapores de pertinência quando se verifica que a dívida
da Petrobras –mais de US$ 100 bi-- atingiu uma dinâmica preocupante.
A estatal criada por Vargas em 1953, a contragosto do PSDB que se chamava UDN, arfa sob um torniquete de duas voltas.
Uma
queda da ordem de 50% nas cotações do barril nos últimos 12 meses
espreme sua receita; a desvalorização de mais de 50% do real,
potencializa seu passivo.
Para
arrematar, o corner financeiro é vitaminado pela paralisia da rede de
fornecedores e empreiteiras, em consequência da Lava Jato.
A cadeia do petróleo foi redesenhada no Brasil nos últimos anos.
Para
o desenvolvimento do país, a Petrobrás hoje é muito mais importante do
ponto de vista estratégico do que quando foi criada por Vargas.
O
petróleo deixou de ser apenas uma marca de abastecimento para ser uma
usina industrializante, geradora de emprego, ciência e pesquisa, fundos
para educação e a saúde, soberania e poder geopolítico.
Representa talvez o derradeiro e o mais valioso legado da luta pelo desenvolvimento ao futuro da nação e o de seus filhos.
Está tudo por um fio.
Ações irrefletidas de venda e desmembramento para fazer caixa podem seccionar cadeias de coerência estratégica e produtiva.
A
pressão de centuriões das petroleiras multinacionais, a exemplo de
Serra e assemelhados, avança para romper o lacre garantidor de toda a
engrenagem.
Se
o regime de partilha for derrubado, como querem, a supervisão
obrigatória da Petrobrás na exploração das novas reservas, graças a uma
participação cativa de pelo menos 30% nos consórcios, cairá por terra.
Não é uma fatalidade, embora o colunismo isento e patriótico faça enorme esforço para torna-lo assim.
O
país dispõe de três trunfos para reagir: reservas internacionais da
ordem de US$ 380 bi; um mercado de massa que já representa 51% da
população (escala que o credenciaria sozinho a figurar no G20) e o
pre-sal.
Não é pouco.
Na verdade, é muito.
Poucas
nações no planeta menosprezariam essas potencialidades na resposta a
uma transição de ciclo de desenvolvimento como a que se vive por essas
bandas
A nação golpista, porém, cerra braços nas fileiras das exceções.
Mas a avenida existe.
Por exemplo.
As
reservas brasileiras em dólar estão aplicadas predominantemente em
títulos e papeis indexados à taxa de juro baixa do mercado
internacional.
No
primeiro trimestre deste ano o governo tomou empréstimos no mercado
interno à taxa de juro média de 5%, para adquirir dólares dos
exportadores.
Na aplicação desses dólares recebe juros de 0,16%.
A
diferença entre o custo de comprar e o de carregar as reservas foi de
R$ 48,358 bilhões nesses três meses. Ou seja, cerca de US$ 11 bi por
trimestre; algo como US$ 44 bilhões/ano.
O
desequilíbrio autoriza um exercício bastante preliminar de realocação
de passivos e ativos que pode dar lastro financeiro ao resgate do futuro
acuado hoje na crise da Petrobrás.
Passo um:
--
se o governo brasileiro comprasse a metade da dívida externa da
Petrobrás junto aos credores internacionais, com deságio, e gastasse
nisso US$ 40 bi das reservas não abalaria seu air-bag de dólares, que
cairiam para ainda expressivos US$ 340 bi.
Passo dois:
-- abre-se assim um espaço para aliviar drasticamente o impasse de caixa da estatal, sem gerar prejuízo ao Estado.
Ao contrário.
A
dívida que apenas trocou de mão seria alongada e indexada a
barris/equivalentes de petróleo, com base na cotação média projetada
para os próximos anos.
A Petrobrás recuperaria seu fôlego e a capacidade de reorganizar soberanamente a cadeia do pré-sal.
O carregamento das reservas brasileiras ficaria mais barato ao país.
Modelos
semelhantes poderiam –deveriam— ser testados para sanear a cadeia das
empreiteiras do PAC e do pré-sal trocando-se, no caso, a remuneração em
barris por ações das respectivas companhias, com alívio para bancos
credores e dividendos superiores à remuneração das reservas.
São especulações rudimentares, repita-se.
Exigem rigoroso trabalho de aprimoramento para a avaliação de sua consistência financeira.
O
que fica claro é que há mecanismos de ajuste para além da lógica
recessiva que faz apenas aprofundar gargalos existentes e criar outros
novos.
Não
é a ‘solução Elena Landau’ que aliviará o horizonte pesado das
expectativas que ora asfixiam o investimento, o emprego, o consumo e a
receita do governo.
A solução tucana tem sua consequência precificada na sulforosa receptividade que desfruta junto a círculos especulativos.
Irradia lógica sabida e sabichona.
Trata-se
de empobrecer o Brasil para enriquecer fundos e capitais ansiosos por
‘comprar o país’ na bacia das almas de uma crise, em certa medida
magnificada pelo autofalante conservador.
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