Sobre o esquecimento da política, ou da política por outros meios

Maria Luiza Quaresma Tonelli, GGN

"Desde a década de 80 Adauto Novaes foi o organizador de um ciclo de debates que reunia, anualmente,  alguns dos mais brilhantes intelectuais do Brasil e do exterior para discutir temas que posteriormente eram publicados em livros.  Em 2007 foi publicado o livro O Esquecimento da Política, que reúne ensaios de vários autores que expõem, cada um ao seu modo, as diversas formas do esquecimento da política. São abordagens que tratam não do fim da política, como esclarece Adauto Novaes no início do livro. Trata-se da análise de várias formas daquilo que se coloca no lugar da política, ou seja, a política realizada por outros meios.

Para nos ajudar a pensar a respeito da nossa atualidade, passo à abordagem de partes do artigo “ O Esquecimento da Política ou Desejo de Outras Políticas?” do pensador Francis Wolff no livro acima citado.

Segundo Wolff, há duas causas que provocam o esquecimento da política: a face comunitária e a face do poder. Podemos esquecer que vivemos em e através de comunidades políticas e que a política é essencialmente uma questão de poder, de projetos e de decisões.

Apresenta então quatro formas de esquecimento da política, conforme citarei a seguir:


O território de si é a primeira forma de esquecimento da política, ou seja, a coisa pública em proveito do particular.

A política, quando desacreditada no sentido de trazer a felicidade, é procurada na vida particular, no sucesso individual, no casal, na família, ou mesmo na nação. O território de si é uma espécie de retorno a um estado pré-político.

Constitui-se num refúgio. Trata-se de uma forma de realismo sem ideal, sem visão do futuro.

A imagem que temos da política na sociedade individualista, mais do que hostilidade, traduz-se numa indiferença misturada com a desconfiança. Nesse individualismo liberal, reina a ética do “cada um por si”; é o triunfo do indivíduo.
Porém, em oposição a esse individualismo dito liberal, há também o comunitarismo. Trata-se aqui de uma tendência à identificação do indivíduo com seu grupo, sua etnia, seu bairro, sua comunidade de nascença, dentre outros.

O comunitarismo não é o contrário do individualismo, mas uma variante ideologizada, uma maneira idêntica de esquecer a política em proveito do território de si. Em ambos os casos temos a afirmação do que sou pelos meus traços identitários e não políticos.


O reino de Deus” é a segunda forma de esquecimento da política apontada por Francis Wolff. Trata-se da substituição da polis dos homens pela polis de Deus, ou seja, a comunidade dos crentes.

A substituição da justiça e de uma felicidade imanentes pela justiça e de uma felicidade transcendentes a este mundo. Nas democracias tal fenômeno coloca em questão a laicidade do Estado, sem a qual não é possível garantir os fundamentos da democracia, a saber: a igualdade perante a lei e a liberdade individual.

O crescimento da influência do pensamento religioso na política das democracias através de representantes políticos religiosos fundamentalistas impondo seus dogmas no espaço que é público, significa um retrocesso e um risco para qualquer sistema democrático, principalmente em razão do crescimento da intolerância em todas as suas formas, como a discriminação, o racismo e o preconceito em suas mais variadas manifestações.

Sob o pretexto de que vivemos numa democracia de direitos, muitas vezes  a democracia pode servir de abrigo para a prática de atos de qualquer natureza. Religiosos fundamentalistas, por exemplo, argumentam que a liberdade de opinião é um direito constitucional e democrático que justifica muitos discursos carregados de preconceito e discriminação, promovendo a intolerância e até a violência contra minorias cujo modo de vida não está de acordo com os parâmetros morais e religiosos defendidos pela comunidade dos crentes. É o paradoxo da democracia: em nome de direitos fundamentais viola-se direitos individuais. Ao afirmar a liberdade individual sem limite, limita-se a liberdade do outro em nome da própria democracia.

O terceiro fator de esquecimento da política apontado por Francis Wolf refere-se ao econômico e ao técnico. A ideia segundo a qual a economia seria uma ciência capaz de explicar o que acontece e prever o que necessariamente vai acontecer permite à economia fazer com que se esqueça da política.

A crença segundo a qual a economia só existe como ciência e que, portanto, não há uma economia política possível – quando sabemos que a economia deveria ser um instrumento nas mãos da política e não o contrário – se opõe justamente à ideia de que a política é a arte do possível. E a maior dificuldade consiste justamente em avaliar o que é possível e o que não é.

Claro que nem tudo é politicamente possível, tampouco nem tudo é economicamente possível. A questão é a maneira como a economia serve de argumento contra a política. Assim, quando a política está submetida à economia é ela que decide, já que a mesma realidade econômica se impõe a todos, não havendo para os políticos, de direita e de esquerda,  nenhuma margem de manobra.

O mesmo mecanismo, embora em sentido inverso, ocorre com relação à técnica, que decide no lugar da política. O técnico no sentido de progresso tecnológico e o técnico no sentido de adaptação dos meios para um fim determinado. No primeiro caso, a tecnologia resolve todos os problemas. Dado que o progresso técnico é inelutável, não há nada a fazer nem a favor, nem contra; ele traz consigo seu lote de benesses necessárias e seus malefícios inevitáveis, afirma Wolff.


Em outro sentido, o técnico pode ser entendido como adaptação racional dos meios para um fim determinado, na medida em que se fala de solução técnica para problemas humanos.

Deste modo, a técnica e a economia têm dois riscos: a tecnocracia, como o poder dos peritos, dos que detêm o saber em determinada área específica, e a crença na onipotência da economia: a ideia de que a política é inútil.

Como aponta Wolff, há o momento das escolhas racionais e o momento das decisões, que não dependem exclusivamente das realidades objetivas, mas de valores, como justiça, equilíbrios sociais, regionais, etc. Aqui o perito nada tem a dizer, pois é papel dos políticos, sem necessidade de um saber específico e especializado, representar os interesses gerais da comunidade. O esquecimento da política em proveito da técnica e da economia, é o esquecimento dos valores propriamente políticos.

Além da tecnocracia, a ameaçar a democracia, vigora a ideia de que o saber pode tudo e as opiniões são vãs. Aqui o esquecimento da política se manifesta na convicção de que dialogar atrapalha a eficácia das decisões, de que é perda de tempo consultar as populações, uma vez que elas não conhecem nada, não sabem nada. Enfim, a democracia, ao deixar de ser o sistema político pelo qual a decisão nasce do debate, da confrontação entre opiniões contraditórias, “perde seu caráter propriamente político quando esquecemos a política, que diz respeito a todos nós, e a entregamos aos profissionais”, afirma Wolff.
    
A quarta maneira de esquecimento da política apontado pelo pensador francês é o “tudo é moral”. Tal como a substituição da política pelo “território de si”, pelo reino de Deus, pelo econômico e o técnico”, a moral substitui a comunidade dos cidadãos por uma comunidade mais vasta: a comunidade humana em geral.



Uma das formas de esquecimento da política em favor da moral é o apagamento de qualquer critério que não seja moral para avaliar a política, seja nacional ou internacional.
Obviamente que a política pode e deve ser avaliada pelo critério moral; a política não é independente da moral dos homens e da ética pública, mas há critérios que são puramente políticos para avaliar uma política com justeza.
Valores morais apagam valores políticos quando os primeiros se aplicam à ação coletiva.  Em que sentido isso acontece? “Valores políticos são positivos, eles mobilizam para um fim; os valores morais são negativos, eles impedem em nome de uma proibição, diz Wolff.
Em suma, “a política visa a um bem, a moral desvia do mal”. Sob tal perspectiva, portanto, o critério da moral não pode ser o único, uma vez que a moral nos diz o que não fazer, jamais o que fazer.

Aqui reside o esquecimento da política em proveito da moral “porque não se espera da política que ela realize boas ações, politicamente falando. Espera-se que ela não cometa más ações, moralmente falando”.

Francis Wolff cita alguns exemplos de como se espera que a política faça o menos possível, sobretudo em política internacional, onde o humanitário se tornou prioridade absoluta. Como ninguém sabe mais o que é justo politicamente, passa-se a condenar o que é moralmente mau. Assim, o inimigo internacional não são mais as ditaduras intoleráveis,  as políticas imperialistas, a servidão de um povo. Hoje só há um inimigo: o terrorismo, um puro conceito moral, segundo Wolff.

A invasão do critério moral também é constatada na política nacional quando, por exemplo, a política de um Estado ou de um governo é julgada mais pela moral individual de seus dirigentes do que pelos sucessos ou fracassos políticos. Julga-se a honestidade dos políticos ao invés de julgar a justiça social de uma política.

Mobiliza-se mais contra a corrupção do que pela luta por causas políticas. Então, quando a palavra de ordem se reduz ao “abaixo a corrupção”, ou quando o grito de guerra é “todos os políticos são ladrões”, retira-se a possibilidade de uma resposta política adequada para o combate à corrupção.

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Diríamos, então, que a condenação moral dos políticos  anda de mãos dadas com a criminalização da política. Nesse sentido, tudo se reduz à condenação moral dos homens, e não à corrupção da própria política. A condenação da corrupção com critérios exclusivamente morais exclui a possibilidade do debate político a respeito do que fazer para combater e controlar a corrupção, bem como transforma as discussões sobre a corrupção numa tarefa infrutífera, onde de um lado estão os honestos, os bons, e do outro lado os desonestos, os maus;  enfim, os corruptos (e sabemos qual é o papel da mídia nesse processo).

Debates sobre a corrupção pautados por critérios exclusivamente morais dão margem à demagogia e à hipocrisia, pois sabemos que muitas vezes o discurso moral pode estar bem distante da prática de alguns políticos. Além disso, segundo Wolff, a moral faz com que se esqueça a política quando o único critério para julgar é o mal, quando se julga a virtude dos homens e não o valor de um projeto ou a eficácia de uma ação.

No Brasil, há muito tempo que o discurso da moral domina o discurso político. Aliás, talvez esta seja uma das características da história da política brasileira, marcada pelo denuncismo. Afinal, é bom lembrar que Getúlio Vargas cometeu suicídio por causa de denúncias de corrupção em seu governo e a destituição de João Goulart, foi marcada pelo discurso moralista da imprensa no período que antecedeu o golpe militar em 1964.

É certo que a condenação moral é uma sanção social, porém não é possível combater a corrupção simplesmente com o discurso moral, mas através de mecanismos de controle eficientes, através de ações políticas que impeçam que interesses particulares e de grupos se sobreponham ao interesse público, da proibição de doações empresariais para campanhas políticas e, além disso, é preciso promover uma cultura política através da educação e de uma imprensa pluralista e democrática que não se preste a denunciar de forma seletiva os crimes de corrupção.

Francis Wolff, ao indicar o território do eu, a religião, a economia, a tecnologia e a moral como formas de esquecimento da política, diz que estas também se constituem em maneiras de pensar a política, uma vez que cada um desses modos de esquecimento pretende, a seu modo, substituir a política. Todas essas formas de esquecimento refletem o recolhimento fora da política, ou seja, se cada homem já é uma humanidade acabada, nada deve à sociedade. Todo o interesse é particular, nada é coletivo ou comum.

Ao apontar esses quatro modos de “esquecimento da política” Francis Wolff não quer dizer que se trate de uma negação da política, mas de formas de esquecimento que indicam a realização da política por outros meios.


Gostaria então de acrescentar uma quinta forma que, na minha opinião, também se constitui numa maneira de esquecimento da política: a judicialização da política e sua consequente criminalização.

A expressão “judicialização da política” é utilizada para caracterizar a crescente importância que as cortes de justiça adquiriram nas democracias contemporâneas.

O fenômeno da judicialização da política  refere-se à ocorrência de uma expansão global do poder judicial em andamento nos sistemas políticos do mundo globalizado. Conflitos que antes eram restritos `as esferas executiva e legislativa do Estado cada vez mais são resolvidos nos tribunais.

Vários estudiosos de tal fenômeno consideram a Operação Mãos Limpas, na Itália, no início dos anos 90,  a origem da judicialização da política”. Porém, esse  processo de judicialização inicia a partir do segundo pós-guerra, quando a democracia contemporânea passa a ser marcadamente constitucional.
Isso significa que a democracia, que é  “poder do povo”, e que tem como fundamento a soberania popular, passa a ser um regime que também se caracteriza pela salvaguarda dos direitos individuais e das minorias contra as maiorias ocasionais, nos tribunais.

A democracia é o regime dos direitos e da luta por direitos. A tomada de decisão na democracia baseia-se no princípio  da maioria, no debate aberto entre iguais nas assembleias eleitas pelo voto popular.  Na democracia quem decide é o povo, a fonte do poder político, através de representantes eleitos.

Ora, se a democracia é o regime dos direitos, não é justo que o poder da maioria se sobreponha aos direitos das minorias.  Por isso a luta das minorias por direitos nem sempre se dá pela via da política. Assim, as minorias recorrem legitimamente  aos tribunais a fim de conquistar direitos que lhes são negados.

Deste modo, a democracia constitucional apresenta uma grande vantagem: ela garante os direitos humanos e de minoria contra maiorias autoritárias ocasionais. Porém,  apresenta uma desvantagem: a limitação do poder político, o poder soberano,  que é o poder do povo.



A lógica desse modelo de democracia constitucional, em que as minorias têm seus direitos garantidos contra as maiorias autoritárias, portanto,  está no equilíbrio entre as esferas do direito como garantia dos direitos das minorias e a esfera da política como expressão da soberania popular.

Porém, o que estamos observando nos últimos tempos é uma ruptura desse equilíbrio, quando o direito muitas vezes se sobrepõe à política.  Neste caso, estamos diante da judicialização da política. Tal fenômeno diz respeito à invasão da política pelo direito e em situações limite, o ativismo judicial que caracteriza o que alguns estudiosos denominam como o perigo do “governo dos juízes”, ou “juristocracia”.

Vale ressaltar, portanto,  que a judicialização da política não é um problema jurídico. É um problema político e é justamente sob esse prisma que deve ser estudado e amplamente debatido com a sociedade, tendo em vista que diz respeito à democracia e seu fundamento, que é a soberania popular.

Primeiro ponto a ser observado quando se trata do tema em questão: o problema da judicialização da política diz respeito à tensão entre democracia e estado de direito, que se traduz numa tensão entre o poder político e o direito, pois na eventualidade de um conflito entre a jurisdição e os poderes legislativo e executivo prevalece a jurisdição, uma vez que no Estado de Direito o poder judiciário tem a última palavra.

Segundo ponto:  nas democracias a tomada de decisão baseia-se no princípio da maioria, no debate aberto entre iguais, nas assembleias eleitas pelo voto popular. Portanto, decisões judiciais e decisões políticas são formas distintas de solução de conflitos.


Segundo o professor Luiz Moreira, um dos maiores estudiosos do tema,
“A Judicialização da Política alcançou patamares alarmantes no Brasil. Sob o argumento de que vivemos sob uma democracia de direitos, o sistema de justiça passou a tutelar todas as áreas, interferindo em políticas públicas, imiscuindo-se no mérito do ato administrativo, desbordando de suas competências para envolver-se em assuntos que foram tradicionalmente conjugados conforme uma organização horizontal do poder, violando assim a autonomia dos poderes políticos, tudo submetendo ao jurídico”.

Deste modo,  afirma Luiz Moreira, “No modelo que ora se apresenta, a legitimidade da democracia no Ocidente decorre dos tribunais constitucionais. Conforme esse modelo, não ocorre apenas a judicialização da política, mas sua consequente criminalização chegando-se à conclusão segundo a qual a democracia emana do direito”.

Nos últimos anos uma vasta literatura sobre o tema da judicialização da política vem sendo publicada em vários países, tendo em vista que a expansão do poder judicial é um fenômeno global. Porém, apesar do crescimento de tal fenômeno, o debate acadêmico que aborda a judicialização da política no mundo ainda é surpreendentemente superficial, com poucas exceções.

Ora, não há dúvida de que a ideia de consolidação das democracias seja acompanhada do aumento da presença do direito, que tem se manifestado muitas vezes na própria linguagem política.

Todavia, o fortalecimento do poder judiciário nas democracias ocidentais contradiz a ideia de Montesquieu sobre a “nulidade” de um poder que deveria ser politicamente neutro, “o mais fraco dos poderes”.

O protagonismo do poder judiciário em nossos dias é evidenciado pela mídia, que se beneficia com a judicialização das dimensões social, política e econômica, na medida em que certos temas são tratados de forma espetacularizada, propiciando um aumento considerável da audiência.

 As empresas de comunicação, que seguem a lógica do mercado, beneficiam-se com a tendência mundial do aumento desmesurado da demanda social pela tutela jurisdicional, contribuindo para a formação de uma opinião pública convicta de que a busca dos direitos nas instâncias judiciárias, sejam individuais, sejam coletivas, se traduza na realização plena da cidadania e de participação ativa na democracia, ou seja, a judicialização das dimensões social e política conduz à ideia de que tudo se resolve por meio da justiça, o que leva a uma desneutralização do judiciário pari passu com uma neutralização da política.

Afirmar a neutralidade do poder judiciário não significa que os juízes devam estar distanciados da realidade pelo fato de que sua função de fazer cumprir a lei exige que se atenham ao que está no mundo do processo.

A neutralidade política do judiciário, além da exigência de imparcialidade, decorre do princípio da separação de poderes, e isso não significa que o juiz, na democracia, deva estar imune à realidade, mas que esteja livre da pressão política e que em seus julgamentos estejam imunes ao clamor popular, fortemente influenciado pela mídia.


A politização do poder judiciário coloca em questão, em determinados momentos, a função do poder legislativo, cujos membros são eleitos pelo povo.
A judicialização da política significaria, nesse sentido,  que uma democracia concebida exclusivamente como forma de governo ou reduzida ao Estado de Direito  pode refletir de maneira significativa no imaginário democrático do cidadão, que pode perder de vista o fato de que o povo é a autoridade da instituição política através de seus representantes no parlamento.

Isso pode significar ainda que o fortalecimento da ideia de democracia como mera forma de Estado jurídico pode estar caminhando pari passu com o declínio da política, considerando que a defesa da lei, ou da legalidade nem sempre é a mesma coisa que a defesa da justiça.

Assim, resta saber se o protagonismo do jurídico em detrimento do político nas democracias contemporâneas é causa ou efeito do enfraquecimento da política, ou se a judicialização da política seria um fenômeno inerente à democracia liberal.

O ativismo jurídico, decorrente do protagonismo judicial, entra em conflito com o papel mediador dos representantes políticos entre o cidadão e o Estado e com isso o Judiciário passa a ocupar no imaginário da sociedade uma função redentora na democracia, principalmente se levarmos em conta que os juízes são cada vez mais solicitados quando a própria política é colocada muitas vezes no banco dos réus.

O controle da justiça, ou a invasão do direito, sob os parâmetros da lei e da ordem sobre a vida coletiva e da própria política nas últimas décadas contradiz a ideia de democracia como o regime dos direitos, da luta por direitos existentes e de novos direitos. Exatamente por isso o conflito faz parte dos regimes democráticos. Política democrática é dissenso. O consenso é resultado do diálogo e dos debates.

A judicialização da política na democracia moderna, ao  converter o Estado de Direito em  Estado “do” Direito, pode estar promovendo o surgimento de novos atores políticos, novas formas de garantias das liberdades, de igualdade, de novas formas de participação política mas também pode, ao contrário,   estar promovendo o surgimento de uma cidadania que se confunde com a mera busca da tutela jurisdicional do Estado,   desresponsabilizando o cidadãos de seu papel político.

Diante do que foi exposto, gostaria de concluir lembrando que a criminalização da política, tal como ela se apresenta em nossos dias, é consequência do fenômeno da judicialização da política,  o que representa uma real ameaça à democracia, que não pode ser entendida simplesmente como regime da lei e da ordem, como quer o pensamento conservador. A democracia é a única maneira pela qual uma sociedade é capaz de resolver seus conflitos. A política democrática, portanto,  jamais deve ter como ponto de partida o consenso. Pelo contrário, se a política é a arte da negociação então o dissenso é o ponto de partida para que se chegue a um acordo possível.

É o respeito `as regras do jogo democrático, pelo diálogo, que a política em seu sentido autêntico se realiza.

 Como afirmei anteriormente, a judicialização também pode ser uma das formas de esquecimento da política. Se não for isso, podemos afirmar, sem dúvida, que pelo menos a hegemonia do jurídico nas democracias pode contribuir para o enfraquecimento da democracia, na media em que representa, em algumas situações,   uma mitigação da soberania popular, o fundamento da democracia que, afinal, significa o poder do povo, não o poder dos juízes.

O termo “povo” representa o sujeito das decisões em qualquer democracia na qual as decisões políticas são tomadas pelo poder majoritário. Decisões tomadas pelo poder judiciário, que é um poder não majoritário, são exceções para garantir o direito das minorias, mas não podem ser transformadas em regra.

 Quando cidadãos passam a  supervalorizar o jurídico em detrimento do poder político  e deixam de participar da política na luta por  direitos, tal supervalorização, sem dúvida, concorre  para a as mais variadas tentativas de deslegitimação o poder político.

A supervalorização do poder judicial em nossa sociedade não seria uma forma desvalorizar a política e de nos esquivarmos  do papel que nos cabe na democracia, na medida em que cada vez mais deixamos de pensar politicamente quando deixamos de pensar o político da democracia?"

Maria Luiza Quaresma Tonelli

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