Cultura do silêncio e democracia no Brasil


"Livro de Venício A. de Lima ilumina o obscurecido debate sobre regulação da mídia

Tereza Cruvinel, Blog: Tereza Cruvinel

Se há um debate que o andar de cima brasileiro esconjura é o da estrutura e regulação dos meios de comunicação no país. Os que têm poder sobre a circulação das ideias e a construção do senso comum fizeram predominar uma figura invertida, em que a liberdade “da” imprensa, vale dizer, das empresas de comunicação, é defendida com ardor como se se tratasse da liberdade de expressão da sociedade como um todo.  Esta é uma formulação de Venício A. de Lima, que neste campo árido tem sido, nas últimas décadas, o mais profícuo, arguto e persistente pensador da relação entre mídia, poder, liberdade e democracia.

Ele está lançando nesta quarta-feira, 10 de Junho, pela Editora UnB, o livro “Cultura do silêncio e democracia no Brasil – ensaios em defesa da liberdade de expressão”: a partir das 18 horas na Livraria Universidade, CLN 406, bloco A, loja 42.

O livro é composto por 19 ensaios escritos e publicados entre 1980 e 2015, período em que grandes transformações tecnológicas aconteceram no setor, alguns países tiveram que fazer ajustes regulatórios, ainda que tímidos, mas no Brasil praticamente nada mudou. Em 1984 fui aluna de Venício no mestrado em Comunicação da UnB, e ele já era antenado com a agenda internacional nesta matéria. Naquele tempo a resolução da Unesco sobre uma Nova Ordem Internacional da Comunicação e da Informação, a Nomic, alimentava a expectativa de que os estados nacionais chegassem a algum pacto regulatório.

Os acordos globais, entretanto, acabaram arquivando a resolução. No Brasil, veio a Constituição de 1988 e Venício assessorou tanto Cristina Tavares como Arthur da Távola, relatores que, embora derrotados pelo bloco conservador em suas proposições mais avançadas, são responsáveis pelos avanços que puderam ser inseridos no capítulo das Comunicações. Resumem-se praticamente aos artigos 221 (que define a natureza da programação das emissoras de radiodifusão, prevendo a regionalização da produção e incentivo à produção independente) e  223 (que ao prever a complementaridade entre sistemas privado, público e estatal permitiu a criação da EBC). Como nunca foram regulamentados, não produziram os efeitos desejados.

Os 19 ensaios de Venício abordam diferentes aspectos da questão das comunicações mas todos são perpassados pela tese-guia que dá título ao livro: a cultura do silêncio e a democracia. Este é um país ruidoso, sempre agitado por uma algaravia de vozes e mensagens. Entretanto, quem fala é uma minoria, que controla o poder, o debate público e os meios através dos quais os “comunicados” chegam às massa silenciosa.

A liberdade de imprensa que, ainda esta semana, foi defendida lá de Moscou pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, contra “qualquer ameaça”, Venício reduz a “liberdade da imprensa”, que não se confunde com o direito à “liberdade de expressão” enquanto fundamento democrático. Mas aqui seguimos, com qualquer referência à regulação levantando protestos contra “tentativas de censura e controle”.

O conceito de “cultura do silêncio” busc primeiramente em  Paulo Freire, que o recuperou do Padre Antonio Vieira, numa curiosa passagem histórica narrada no ensaio “Da cultura do silêncio ao direito à comunicação”. Ao saudar o novo vice-rei de Portugal no Brasil, o marquês de Monte Alvão, logo que a dinastia dos Bragança pôs fim aos 60 anos de sujeição portuguesa à Espanha, em 1640, Vieira começa seu sermão associando o evento ao calendário litúrgico que, naquele dia, evocava a Visitação de Nossa Senhora a sua prima Isabel, ambas grávidas, de Jesus e João Batista, respectivamente. Diz uma frase em latim que refere  aos “infants” que carregavam nos ventres, e traduz a palavra,  que significa: aquele que não fala. Construiu assim o pretexto para uma estocada no colonizador, dizendo que o Brasil também esteve sempre neste estado, calado, sem poder falar. “O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males mas sempre lhe afogou a palavra na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”. Tão preciso diagnóstico em tão bela metáfora.

Mais tarde, em seus escritos e em sua militância pela educação como libertação, Paulo Freire deu contornos mais nítidos à ideia do pais-povo que não fala.  “Entendemos por mutismo brasileiro a posição meramente expectante do nosso homem diante do processo histórico”. Mutismo que ele associa à inexperiência democrática e às sociedades que “negam a comunicação e o diálogo” e, “em seu lugar oferecem comunicados”: verticais, unilaterais, emanados do que têm os “autofalantes”.

E daí salta Venício para o antídoto, o conceito de “direito à comunicação”, que tem sua primeira expressão oficial no Relatório McBride, de 1980, resumindo uma série de conclusões da comissão multilateral criada em 1977 para discutir o fluxo internacional das comunicações em sentido único.

O relatório enfrentou resistências dos países que dão as cartas mas desde então a ideia do direito à comunicação vem sendo apropriada por estudiosos e grupos sociais envolvidos com o debate sobre a democratização das comunicações em diferentes países, inclusive no Brasil. Trata-se do direito, individual e coletivo, a não apenas ter acesso às comunicações e receber informações mas também do direito de exercer a liberdade de expressão. O direito de todos à fala e à voz audível na esfera pública.

Mas como garantir tal direito, tão pouco conhecido ou assimilado, sem políticas públicas de comunicação? Como garantir que ele prevaleça em sistemas que têm apenas a vertente empresarial da mídia, monopólica ou oligopólica? Como assegurar que “todas as vozes” possam ser ouvidas senão com a existência complementar de meios públicos aos meios privados? Esta é a questão em que ainda engatinhamos.

De muito mais tratam os ensaios de Venício. Detive-me no tema título porque ele me mobiliza pessoalmente e relaciona-se com minha experiência no esforço desenvolvido, entre 2017 e 2011, para dotar o Brasil de um sistema público de comunicação, como previsto pela Constituição. Muito mais há porém, no livro, para ler e refletir sobre os tempos que vivemos, aqui e alhures, ainda marcados pela “inexperiência democrática” e pela “cultura do silêncio” que cai como um véu pesado sobre as maiorias silentes."

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