Entenda os efeitos concretos do que pode ser a maior derrota popular desde o golpe de 64.
Jorge Luiz Souto Maior, Carta Maior
Não se pode atribuir alguma razão, mínima que seja, àqueles que ora
defendem a aprovação do PL 4.330/04, pois todos os argumentos que
utilizam são falaciosos, ideológicos, visando escamotear as suas reais
motivações.
Vejamos a fragilidade dos argumentos utilizados em defesa do PL.
a) "Modernização"Diz-se
que a terceirização é técnica moderna do processo produtivo, quando, em
verdade, o que chamam de terceirização não é nada além do que a
intermediação de mão-de-obra que já existia nos momentos iniciais da
Revolução Industrial, e cujo reconhecimento da perversidade gerou, na
perspectiva regulatória corretiva, a enunciação do princípio básico do
Direito do Trabalho de que “o trabalho não deve ser considerado como
simples mercadoria ou artigo de comércio” (Tratado de Versalhes, 1919),
do qual adveio, inclusive, a criminalização, em alguns países como a
França, da “marchandage”, ou seja, da intermediação da mão-de-obra com o
objetivo de lucro. O próprio conceito de “subordinação jurídica” é uma
construção teórica forjada para superar o obstáculo obrigacional advindo
da formalização de contratos entre tomadores de serviços e prestadores
de serviços, de modo a atribuir, em concreto, responsabilidades
jurídicas ao capital que efetivamente se vale da exploração final da
força de trabalho (“subordinação estrutural”, atualizada para
“subordinação reticular”).
Cumpre acrescentar que o argumento retórico em torno da “modernidade” nos acompanha, na realidade brasileira, há várias décadas[1],
valendo lembrar que esteve presente quando se aniquilou com a
estabilidade no emprego, em 1967, substituindo-a pelo FGTS, bem como
quando se instituíram o trabalho temporário, em 1974, o contrato do
vigilante, em 1984, a terceirização, em 1993, as cooperativas de
trabalho, em 1994, o banco de horas, em 1998, o contrato provisório, em
1998, o contrato a tempo parcial, em 1999...
O que ocorre é que a
redução de direitos obviamente não gera o efeito concreto da melhora da
economia e sem a revelação do embuste de foi vítima a classe
trabalhadora novas reivindicações de retração de direitos acabam sendo
propostas e, pior, com o mesmo argumento da “necessidade de
modernização”.
b) “Preserva direitos trabalhistas”Diz-se que os direitos
trabalhistas, previstos na CLT e na legislação em geral, serão todos
garantidos no regime de contratação da PL 4.330/04. Em outras palavras,
que a terceirização não significará a retirada de direitos.
Ora,
as pessoas e instituições que defendem a ampliação da terceirização com
essa afirmação são exatamente as mesmas que até dias atrás se valiam dos
argumentos retórica e historicamente construídos de que os direitos
trabalhistas foram outorgados por Vargas sem que houvesse uma
necessidade real para tanto, de que são excessivos e de que impedem o
desenvolvimento econômico. Não se pode, pois, atribuir qualquer crença
ao fato de que estejam, agora, de fato, preocupadas em fazer valer as
leis trabalhistas. Ademais, a realidade das relações de trabalho no
Brasil é a da completa ineficácia da legislação, a qual, portanto, só
existe no papel, e isto se dá exatamente por obra dessas mesmas pessoas e
instituições, que têm se valido de todos os ardis possíveis para negar a
aplicação de direitos aos trabalhadores. Assim, seria no mínimo ingênuo
se deixar levar pela promessa de que por conta da terceirização, que
fragiliza a classe trabalhadora, essa realidade seria, como passe de
mágica, alterada. É evidente, pois, que a ampliação da terceirização se
insere na estratégia dessa gente de suprimir os direitos trabalhistas.
c) “Gera empregos”Para defender o PL 4.330/04 tenta-se
vender a ideia de que a terceirização seria instrumento de estímulo ao
emprego. Ora, cabe frisar, em primeiro lugar, que quando se fala em
terceirização não se está tratando de emprego, mas de subemprego, quando
não de trabalho em condições de semi-escravidão. Então, na essência, a
terceirização no máximo poderia aumentar os postos de trabalho nessas
condições, sendo que como em concreto não é a forma como se regulam as
relações de trabalho que impulsiona a economia, mas a dinâmica da
produção e da circulação de mercadorias, o que se verificaria com a
ampliação da terceirização seria apenas a transformação dos atuais
empregos em subempregos, de modo, inclusive, a favorecer o processo de
acumulação do capital e até da evasão de divisas, vez que o grande
capital está sob domínio de empresas estrangeiras.
E ainda que se
pudesse conceber algum benefício para a economia com a redução dos
direitos trabalhistas e mais propriamente com a redução da participação
do trabalho no produto interno bruto, o que se aceita apenas como mera
hipótese argumentativa, mesmo assim a proposição seria indefensável, na
medida em que o preço a ser pago pelos trabalhadores seria alto demais.
Concretamente, qual o interesse na preservação de um modelo de sociedade
que para se sustentar impõe sacrifícios exatamente àqueles que produzem
as riquezas, mantendo uma parcela bem pequena da sociedade, incluindo
os que se integram à burocracia de Estado, em situação economicamente
bastante confortável? Preconizar a redução de ganhos dos trabalhadores
como forma de salvar a economia, sem redução proporcional dos ganhos das
empresas, dos diretores, acionistas e burocratas do Estado, é antes de
tudo ofensivo, além de ser economicamente ineficaz.
De todo modo, é oportuno verificar esse argumento, que admite a
existência da sociedade do trabalho, da essencialidade do trabalho para a
estabilização e o desenvolvimento do modelo de produção capitalista e
das potencialidades desse modelo de criar emprego, com garantias
jurídicas, e não apenas trabalho, sem qualquer proteção, integrado à
fala daqueles que até dias atrás diziam que o trabalho não existe mais,
que estávamos vivendo a sociedade do fim do trabalho, sendo que
utilizavam essa retórica exatamente para dizer que quem possuía emprego
era um privilegiado e que privilégios não se coadunam com direitos.
d) “Terceirização não precariza”Dizer
que a terceirização não precariza é tentar fazer todo mundo de idiota,
afinal, a situação das condições de trabalho dos terceirizados na
realidade brasileira tem sido, há mais de 20 (vinte) anos, a de um
elevadíssimo número de acidentes do trabalho, inclusive fatais; de
trabalho em vários anos seguidos sem gozo de férias; de jornadas
excessivas; de não recebimento de verbas rescisórias; de ausência de
recolhimentos previdenciários e fundiários, sem falar do assédio
provocado pela discriminação e, mais propriamente, pela invisibilidade.
Neste aspecto, aliás, é bastante reveladora a preocupação do governo
federal, que em vez de se colocar contrário ao projeto, já que advindo
do denominado Partido dos Trabalhadores, tentou alterar o PL de modo a
evitar que a terceirização pudesse gerar prejuízos aos cofres do governo
no que se refere à falta de recolhimentos previdenciários, fundiários e
fiscais, buscando fazer com que tais obrigações fossem assumidas
diretamente pelas empresas tomadoras dos serviços. A preocupação do
governo, que acabou não sendo acatada, ao menos por enquanto, é uma
confissão de que terceirização precariza. É evidente, ademais, que se
uma empresa, que detém capital, contrata outra para a realização de
serviços, a tendência é a de que a empresa contratada não possua o mesmo
potencial capitalista, sofrendo muito mais facilmente as variações da
economia, descarregando as consequências sobre a parte mais fraca, os
trabalhadores.
De todo modo, a forma tentada pelo governo em
preservar o seu interesse é uma ilusão porque a sua perda se consumaria
mesmo que a medida intentada fosse acatada, pois com a precarização os
ganhos dos trabalhadores tendem a diminuir, reduzindo, por conseguinte, a
base sobre a qual o governo faz suas arrecadações.
f) “Preocupação com o negócio principal”Diz que a terceirização advém da “necessidade de que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal”
– grifou-se. Ocorre que o objetivo do PL é ampliar as possibilidades de
terceirização para qualquer tipo de serviço. Assim, a tal empresa
moderna, nos termos do PL, caso aprovado, poderá ter apenas
trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual seria, então, o
“negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação direta essa
empresa moderna possuiria com o seu “produto”?
E se
concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades,
gerando o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode,
de fato, melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço,
então a empresa contratante não possui uma relevância específica. Não
possui nada a oferecer em termos produtivos ou de execução de serviços,
não sendo nada além que uma instituição cujo objeto é administrar os
diversos tipos de exploração do trabalho. Ou seja, a grande empresa
moderna, nos termos do projeto, é meramente um ente de gestão voltado a
organizar as formas de exploração do trabalho, buscando fazer com que
cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”, que pretende
rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui, ademais,
apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que
está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho
subordinado pela necessidade e falta de alternativa.
f) “Dupla garantia para os trabalhadores”Diz-se que para
os trabalhadores o PL é um avanço porque com ele os trabalhadores teriam
duas entidades a lhes garantir a efetividade dos direitos: a prestadora
(sua empregadora) e a tomadora.
Primeiramente, vale o registro
de que o PL permite que a própria prestadora terceirize, pois se toda
empresa pode terceirizar sua atividade-fim, a empresa de terceirização,
cuja finalidade é comercializar gente, também poderá, ela própria,
terceirizar. Aliás, o PL faz alusão a essa possibilidade expressamente.
Então,
segundo o argumento utilizado, esse trabalhador “quarteirizado” teria
ainda mais garantias que o terceirizado, o que já demonstra o absurdo da
argumentação, pois é por demais evidente que quanto mais o capital se
organiza em relações intermediadas, mais o capital das prestadoras de
serviço se fragiliza, fazendo com que, obviamente, se diminua a
participação do trabalho na distribuição da riqueza produzida.
O que a tomadora, considerada como aquela que efetivamente detém
capital, pode fazer é garantir o ressarcimento econômico de direitos que
não foram cumpridos, mas esses direitos, na dinâmica da intermediação,
já foram reduzidos. Além disso, o percurso para se chegar a essa
garantia é necessariamente judicial, vez que não há fórmula que obrigue a
tomadora à prática de tal ato senão pela via do processo na Justiça do
Trabalho. No processo, prevê-se uma extensa discussão acerca dessa
responsabilidade, fazendo com que o recebimento do trabalhador de seus
direitos diretamente da tomadora seja incerto e demorado.
Aliás,
cumpre advertir que as lides processuais, no contexto de um modelo de
produção que tem a terceirização como regra, tendem a se complicar
excessivamente, com número elevado de empresas reclamadas em que cada
processo e, consequentemente, com majoração de incidentes processuais,
recursos etc.
O Judiciário trabalhista, que já se encontra
atolado, embora ainda consiga prestar um serviço razoavelmente
satisfatório, tende a entrar em estado pleno de falência institucional,
provocando, e vendo retroalimentados os seus problemas, a prática do
desrespeito deliberado e reiterado da legislação trabalhista.
Em
suma, com a terceirização, o trabalhador não está duplamente garantido,
mas verá multiplicar em várias vezes a sua dificuldade de fazer valer
seus direitos, que, vale repetir, já serão reduzidos, caso acatada a
estratégia contida no PL 4.330.
g) Efeito concretoPor fim, falando de forma mais clara da
realidade, o que se almeja com o PL 4.330, que, vale reforçar, está
sendo incentivado por segmentos empresariais ligados ao grande capital,
não é, e não poderia mesmo ser, a melhoria da condição de vida dos
trabalhadores e a efetividade plena dos direitos trabalhistas.
Esquematicamente falando, o que se pretende com o PL 4.330 é:
- fragmentar a classe trabalhadora;
- dificultar a formação da consciência de classe;
- estimular a concorrência entre os trabalhadores;
- difundir com mais facilidade as estratégias de gestão baseadas em fixação de metas impossíveis de serem alcançadas e assediantes, detonadoras da auto-estima;
- incentivar práticas individualistas e, consequentemente, destrutivas da solidariedade;
- inibir a capacidade de organização coletiva;
- minar o poder de resistência e de luta dos trabalhadores;
- aumentar a submissão (juridicamente apelidada de subordinação) do trabalhador;
- facilitar a mercantilização da mão-de-obra.
A
terceirização, disseminada como legítima e sem qualquer limite ou peia,
permite que esses efeitos se produzam muito mais facilmente, ainda mais
quando se utilizem das técnicas administrativas que lhe são
características, tais como constantes trocas de horários de trabalho, alterações de postos de trabalho e intensificação da rotatividade de mão-de-obra.
Tudo
isso somado, por certo, faz prever um cenário de grandes perdas e
sofrimentos para a classe trabalhadora com a aprovação do PL 4.330,
representando, como dito pelo sociólogo Ruy Braga, “a maior derrota
popular desde o golpe de 64”[2], mas isso caso seja, de fato, aplicado na forma imaginada e planejada pelo setor econômico.
Ocorre que as complexidades do mundo jurídico vão bem além das vontades
daqueles que, detendo hegemonia econômica, se consideram também os
“donos do poder”. Como já advertido em outro texto, é uma ilusão
considerar que “a ordem jurídica constitucional, que foi pautada pela
lógica da prevalência dos Direitos Humanos e da proeminência dos
Direitos Sociais, exatamente para inibir que os interesses puramente
econômicos fossem utilizados como argumentos para reduzir o patamar de
civilização historicamente alcançado, possa ser utilizada como
fundamento para garantir valores sem qualquer sentido social, como a
‘liberdade de contratar’ e a ‘segurança jurídica’”, sendo certo que não
será “uma lei ordinária, votada por pressão da bancada empresarial, que
vai conseguir fazer letra morta da Constituição ou mesmo impedir que
juízes trabalhistas cumpram o seu dever funcional de negar vigência a
qualquer lei que fira a Constituição e impeçam a eficácia dos Direitos
Humanos e dos Direitos Fundamentais Sociais”[3].
2. EnfrentamentoEssa
característica do âmbito jurídico faz pressupor que diante de eventual
aprovação do PL 4.330/04, por mais trágico que possa ser para a classe
trabalhadora, muitas novas tensões advirão, até porque não é minimamente
razoável imaginar que o projeto constitucional de justiça social e a
racionalidade dos Direitos Humanos não sejam defendidos de forma firme e
consistente pelos profissionais ligados ao Direito do Trabalho e às
diversas áreas do conhecimento que se interligam com o mundo do
trabalho.
Não cabe neste momento antecipar os vários argumentos jurídicos que
poderão ser utilizados como resistência a essa tentativa de derrocada da
ordem constitucional, vez que a luta agora ainda é pela rejeição do PL
4.330/04.
De todo modo, para que se tenha um pouco do alcance
desse movimento de resistência, vale o registro do Manifesto, expedido
em 12 de abril de 2015, pela Rede Nacional de Pesquisas e Estudos em
Direito do Trabalho e da Seguridade Social[4].
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[1]. Vide, a propósito, o texto, “Modernidade e Direito do Trabalho”, in: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/52486/008_soutomaior.pdf?sequence=1
[2]. http://www.cartacapital.com.br/economia/lei-da-terceirizacao-e-a-maior-derrota-popular-desde-o-golpe-de-64-2867.html, acesso em 12/04/15.
[3]. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/06/pl-4-33094-maldade-explicita-e-ilusao/, acesso em 12/04/15.
[4]. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/13/manifesto-contra-o-pl-4-33004/, acesso em 14/04/15.
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