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O Brasil que não enxerga o seu lugar
"Em
2010, a velha mídia tentou demonstrar que o governo havia cometido uma
petulância em negociar com o Irã. Hoje teriam de reconhecer que Lula
acertou.
Há cinco anos, em maio de 2010, o Brasil subverteu a hierarquia mundial e
se uniu à Turquia para firmar com o Irã, no dia 17 daquele mês, a
Declaração de Teerã. Era o desfecho bem sucedido de uma intensa
negociação para superar o impasse gerado pela determinação iraniana de
dispor de urânio enriquecido para fins pacíficos, e o veto
israelense-americano às pesquisas, que levariam, segundo esse ponto de
vista, à bomba atômica.
A negociação consistiu em estabelecer
salvaguardas de controle sobre o urânio enriquecido, de modo a assegurar
o direito iraniano à pesquisa e impedir o uso bélico desse material.
O
veto dos EUA pôs a perder os esforços do Itamaraty e a mídia local
festejou o ‘fracasso de Lula’ em criar um espaço de confiança e
cooperação para abafar os tambores da guerra no Oriente Médio.
A torcida contra da mídia, algo grotesca, tinha objetivo claro: impedir
que o governo Lula levasse mais esse trunfo ao escrutínio eleitoral que
decidiria a sucessão entre o tucano José Serra e a então ministra Dilma
Rousseff, meses depois.
Um gigantesco esforço de ‘jornalismo
isento’ foi feito então, em parceria com a nafitalina tucana egressa do
Itamaraty, para demonstrar que o governo Lula havia cometido uma
petulância e deveria voltar aos trilhos. Talvez fosse melhor dizer à
canga, renunciando a uma política externa de soberania frente à Casa
Branca.
Na semana passada, após cinco anos de cerco e restrições
impostas à população iraniana, levando a um aumento da tensão bélica na
região, o governo Obama fechou um acordo com Teerã baseado exatamente
no principal alicerce da Declaração de maio de 2010: a confiança
ancorada em regras de transparência para conciliar o uso pacífico da
energia nuclear à segurança anti-armamentista.
À exceção de um
jornalista –Clóvis Rossi-- a mídia isenta declinou de reconhecer o
acerto do pioneirismo brasileiro escarnecido na época como mais um sinal
de que sob o governo do PT, o Brasil perdera o senso do seu lugar no
mundo.
À época, Carta Maior publicou uma análise de José Luís Fiori que
reverbera sua atualidade num momento em que o jogral midiático tenta, de
novo, criar um consenso de que o Brasil é um esférico fracasso
econômico. E deveria voltar aos trilhos do neoliberalismo pelo bem ou
pelo golpe.
Nada como o tempo. Leiam a seguir o artigo de Fiori.
Um acordo e seis verdades:
“A mediação bem sucedida de Lula com o Irã alçaria Brasil no cenário mundial.”
O Globo, domingo, 16 de maio de 2010, p:38
Na
terça feira, 18 de maio de 2010, foi assinado o Acordo Nuclear entre o
Brasil, a Turquia e o Irã, que dispensa maiores apresentações. E como é
sabido, quarenta e oito horas depois da assinatura do Acordo, os Estados
Unidos propuseram ao Conselho de Segurança da ONU, uma nova rodada de
sanções ao Irã, junto com a Inglaterra, França e Alemanha, e com o apoio
discreto da China e da Rússia. Apesar da rapidez dos acontecimentos, já
é possível decantar algumas verdades no meio da confusão:
1. A
iniciativa diplomática do Brasil e da Turquia não foi uma “rebelião da
periferia”, nem foi um desafio aberto ao poder americano. Neste momento,
os dois países são membros não permanentes do Conselho de Segurança da
ONU, e desde o início contaram com o apoio e o estímulo de todos dos
seus cinco membros permanentes. Além disto, a diplomacia brasileira e
turca manteve contato permanente com os governos destes países durante
todo o processo das negociações. A Turquia pertence a OTAN, e abriga em
seu território armas atômicas norte-americanas. E o presidente Lula
recebeu carta de estímulo do presidente Barack Obama, duas semanas antes
da assinatura da visita de Lula, e a Secretária de Estado
norte-americana declarou – na véspera do Acordo - que se tratava da
“última esperança” de solucionar de forma diplomática a “questão nuclear
iraniana”.
2. O que provocou surpresa e irritação em alguns
setores, portanto, não foram as negociações, nem os termos do acordo
final, que já eram conhecidos. Foi o sucesso do presidente brasileiro
que todos consideravam impossível ou muito improvável. Sua mediação
viabilizou o acordo, e ao mesmo tempo descalçou a proposta de sanções
articulada pela Secretaria de Estado norte-americana depois de
sucessivas concessões à Rússia e à China. E alem disto, criou uma nova
realidade que agora já escapou ao controle dos Estados Unidos e seus
aliados, e também do Brasil e da Turquia.
3. A reação americana
contra o Acordo foi rápida e ágil, mas o preço que os Estados Unidos
pagarão pela sua posição contra esta iniciativa pacifista será muito
alto. Perdem autoridade moral dentro das Nações Unidas e perdem
credibilidade entre seus aliados do Oriente Médio, com a exceção de
Israel, por razões óbvias. E já agora, passe o que passe, o Brasil e a
Turquia serão uma referência ética e pacifista, em todos os
desdobramentos futuros deste contencioso.
4. Existe consenso que a
estrutura de governança mundial estabelecida depois da II Guerra
Mundial, e reformulada depois do fim da Guerra Fria, já não corresponde à
configuração do poder mundial. Está em curso uma mudança na
distribuição dos recursos do poder global, mas não se trata de um
processo automático, e dependerá muito da capacidade estratégica e da
ousadia dos governos envolvidos neste processo de transformação. O
Oriente Médio faz parte da zona de segurança e interesse imediato da
Turquia, mas no caso do Brasil, foi a primeira vez que interveio numa
negociação longe de sua zona imediata de interesse regional, envolvendo
uma agenda nuclear, e todas as grandes potências do mundo. A mensagem
foi clara: o Brasil quer ser uma potencia global e usará sua influencia
para ajudar a moldar o mundo, além de suas fronteiras. E o sucesso do
Acordo já consagrou uma nova posição de autonomia do Brasil, com relação
aos Estados Unidos, Inglaterra e França, e também, com relação aos
países do BRIC.
5. O Acordo seguirá sendo a melhor chance para
prevenir um conflito militar em todo o Oriente Médio. As sanções em
discussão são fracas, já foram diluídas, não são totalmente
obrigatórias, e não atingirão a capacidade de resistência iraniana. Pelo
contrário, se foram aprovadas e aplicadas, liberarão automaticamente o
governo do Irã de qualquer controle ou restrição, diminuirão o controle
norte-americana e da AIEA e acelerarão o programa nuclear iraniano, e
aumentarão a probabilidade de um ataque israelense. Porque os Estados
Unidos já estão envolvidos em duas guerras, e não é provável que a OTAN
assuma diretamente esta nova frente de batalha, a despeito do
anti-islamismo militante, dos atuais governos de direita, da Alemanha,
França e Itália.
6. Por fim, o jornal O Globo foi quem acertou em
cheio, ao prever - com perfeita lucidez - na véspera do Acordo, que o
sucesso da mediação do presidente Lula com o Irã projetaria o Brasil,
definitivamente, no cenário mundial. O que de fato aconteceu,
estabelecendo uma descontinuidade definitiva com relação à política
externa do governo FHC, que foi, ao mesmo tempo, provinciana e
deslumbrada, e submissa aos juízos e decisões estratégicas das grandes
potências. "
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