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Quando o governo faz a diferença
"Ele
sabia que nenhum país sai de uma crise sem um protagonista social que o
conduza. Há muito o que aprender com Franklin Roosevelt.
A expressão ‘vontade política’ ficou conhecida no passado como um
cacoete petista. Uma espécie de ‘melhoral de voluntarismo’ para todos os
males do país.
Há limites, claro.
Os homens constroem a sua história, mas se negligenciarem as circunstâncias serão atropelados por elas.
Diante de uma transição de ciclo econômico da gravidade da atual não basta vontade.
Se
não houver força organizada e propostas críveis à equação das forças e
interesses em litígio, o risco de morrer na pista é grande.
Exageros à parte, a verdade porém é que sem iniciativa política tampouco se sobrevive.
A própria organização que ela catalisaria é abortada na forma de prostração e perda de autoconfiança.
Pode ser fatal.
Um
governo, uma nação inteira, torna-se assim refém das mandíbulas dos
mercados, cuja supremacia e capacidade de coerção só podem ser
afrontadas pela ação da cidadania armada de discernimento crítico e
liderança desassombrada.
Não é uma tertúlia acadêmica.
A
ausência dessa determinação configura-se hoje como um problema tão ou
mais grave do que todos os desafios econômicos enfrentados pelo Brasil.
Cada
crise tem a sua especificidade, mas há um exemplo clássico de
desassombro político, armado de forte ativismo estatal – a contrapelo de
todas as advertências do bom senso dominante -- que contribuiu
decisivamente para evitar a caminhada de uma nação rumo ao abismo.
Ao
emitir um sinal firme de rumo e autoridade devolveu a autoconfiança à
sociedade, organizou seus trabalhadores e trouxe de volta o impulso ao
investimento.
Tudo isso no bojo de uma crise global de gravidade idêntica à atual, ou pior
Foi num mês de março como agora, nos EUA, há oitenta e dois anos.
Franklin
Roosevelt, o presidente americano frequentemente evocado quando se
trata de buscar um paradigma à altura dos desafios históricos de uma
nação, tomara posse no dia 3 de março de 1933.
Era uma sexta-feira .
No
domingo, dia 5, emitiria uma nota convocando o Congresso dos EUA para
sessão extraordinária que deveria ocorrer na quinta-feira, dia 9.
Trabalharia exaustivamente no fim de semana.
A
uma da madrugada, já na segunda-feira, dia 6, o presidente democrata
socorreu-se de uma lei da Primeira Guerra Mundial que confere poderes
adicionais ao chefe de Estado norte-americano tanto na esfera monetária
quanto cambial.
Decretou um feriado bancário de quatro dias, assegurando-se de que não haveria corrida às agências até a sessão legislativa.
As precauções eram justificáveis.
A
insegurança, a especulação e o desemprego faiscavam por todo o país. O
medo do futuro sentava-se à mesa de milhões de lares mesmo sem ter sido
convidado.
O emprego, a casa, a comida e o dinheiro estavam na linha de tiro do dinheiro ensandecido.
Independente
de quantas voltas a chave pudesse girar na fechadura, nada, nem
ninguém, podia sentir-se em posição confortável naquele momento.
Não havia um centímetro de chão sólido no imaginário da sociedade.
Bolsas,
bancos, fundos, grande conglomerados, políticos e justiça compunham
diante da sociedade a caricatura de um enorme ladravaz.
Uma
bocarra disposta a devorar até a última lasca da economia em benefício
próprio. A ameaça do futuro resmungava sua língua pestilenta em cada
esquina.
A estrutura bancária dos EUA era uma montanha desordenada de reputações em ruína.
Notícias de demissões faziam fila de espera nas manchetes de jornais.
Havia
a percepção crescente de que as autoridades estavam à reboque dos
acontecimentos, engasgavam com as notícias no café da manhã; rezavam à
noite em silêncio pelo dia seguinte.
Números azedos rugiam para a economia diuturnamente sem que se erguesse uma voz capaz de comandá-los.
O monólogo dos tempos difíceis ia impondo sua ordem unida na frente da produção, do emprego e da política.
A
percepção de que as rédeas escapavam às mãos que deveriam controlá-las
fornecia a ração diária de ceticismo e pânico que engrossava a cintura
do colapso econômico.
O relógio da crise adiantava seu despertar a cada dia.
O salve-se quem puder amplificado pela mídia fornecia combustível à imolação coletiva.
Na
semana em que Roosevelt assumiu a presidência dos EUA, o país tinha
proporcionalmente o maior contingente de desempregados do mundo.
Mais de 14 milhões, número que somado às respectivas famílias equivalia a uma população maior que a da Inglaterra então.
A
perda de confiança no futuro funcionava como uma empresa demolidora;
milhões de marretas anônimas trabalhavam dia e noite para desmontar o
que restava do alicerce social e econômico.
É nesse ponto que o
timming das ações do governo – de qualquer governo – e, sobretudo, a
natureza de sua comunicação à sociedade, faz enorme diferença.
Cada
gesto, cada decisão, cada anúncio adquire uma dimensão estratégica; a
forma como as providências são comunicadas, ademais de sua contundência,
sobre a qual não pode pairar dúvida ou se revelam inócuas, ganha
importância de variável histórica.
Uma crise tem um tempo certo para ser derrotada, ou derrotará o governo -- a produção e o emprego - que vacilar diante dela.
Nisso,
sobretudo nisso, Roosevelt revelou-se o estadista cuja habilidade ainda
tem lições a oferecer a seus pares nos dias que correm.
A primeira lição: a rapidez em ocupar a frente do processo; contemporizar é capitular.
E explicar, explicar, explicar. Explicar cada passo dado e sinalizar o seguinte.
Construir o caminho com a sociedade, em vez de comunicar metas etéreas e avulsas.
Em
apenas uma semana de mandato ele tomou algumas decisões que não
exorcizaram todos os demônios, mas foram afrontá-los em seu próprio
campo.
Olhando esse momento histórico a partir de um mirante crítico, não se pode dizer que foram medidas acanhadas.
Hoje
ainda elas sugerem tudo menos tibieza e hesitação diante do grande
vendaval que se forma quando o pânico e o dinheiro se encontram numa
mesma esquina.
Quantos dos atuais chefes de Estado teriam a coragem de anunciar hoje o que Roosevelt proclamou naqueles idos de março de 1933?
Os tempos são outros, é verdade.
A
globalização tornou tudo mais difícil, justificam aqueles que ocultam
sua hesitação nas dificuldades do presente para ofuscar o componente de
coragem dos personagens do passado.
Mas o fato é que ao fazer
seu segundo discurso à Nação, em 12 de março --note-se, o segundo grande
discurso referencial em nove dias de mandato-- Roosevelt trazia
alguns troféus do primeiro round de uma luta que se estenderia até 1944,
quando os EUA declararam guerra ao Eixo.
Só então, de fato, seu
potencial produtivo pode, finalmente, ser acionado a plena carga para
desvencilhar-se da recessão, graças às encomendas bélicas.
Muitos relativizam o alcance das medidas tomadas nos anos que antecederam esse momento.
Mas
poucos lembram de se perguntar o que teria acontecido com o presidente
democrata, reeleito quatro vezes (de 1933 a 1945), se a sua autoridade
tivesse fraquejada nas primeiras horas, da primeira semana, nos
primeiros cem dias do seu primeiro mandato?
É sobre isso que o
governo brasileiro deveria refletir hoje em vez de se render a um dominó
protelatório em que os desafios são terceirizados a um Bonaparte na
expectativa de que ele dome o cavalo xucro da crise e depois o devolva
encilhado e manso ao controle da sociedade.
Ontem, como hoje, o
capital quer se livrar das amarras da história, livrar-se dos encargos
trabalhistas, das greves, dos Morales, Lulas, Dilmas, Cristinas e de
suas concessões sociais.
Se a globalização ampliou as condições
para a utopia capitalista, o dragão afrontado por Roosevelt em 1933
exalava as mesmas obsessões. E, como hoje, talvez pior, o democrata
também não dispunha de nenhuma ancora internacional na qual se amparar
para enfrentar os mercados, seus exércitos e bombas de extermínio.
Seu valioso contrapeso era intuição política para atuar no vácuo da crise sem se deixar engolir por ela, mesmo quando hesitava.
Foi
assim que fez um Congresso hostil discutir e aprovar, em um único dia,
uma Lei de Emergência Bancária em rito fulminante, na quinta-feira, dia
9, seis dias depois da posse.
Estamos falando de Roosevelt, não de Lênin.
A Emergência Bancária facultava a ingerência estatal sobre todo o sistema financeiro público e privado dos EUA.
Repita-se,
Roosevelt não pretendia liderar uma revolução bolchevique. Queria
reformar a economia para que pudesse outra vez fazer prosperar o emprego
e a produção, eliminar a fome e a miséria no seio das famílias.
Em 1933, Roosevelt sabia intuitivamente o que hoje é um consenso teórico, mas não político.
Para salvar o capitalismo de si mesmo, é preciso subordinar o crédito aos desígnios da produção, do emprego e do consumo.
Só
a indução firme do Estado é capaz de fazê-lo em tempo hábil, antes que a
epidemia recessiva se alastre e derreta o metabolismo econômico.
A Lei de Emergência dava ao Estado norte-americano essa faculdade e Roosevelt a exerceria com rapidez e apetite de um estadista.
Enquanto
seus potenciais seguidores patinam na hesitação, há 82 anos, no
longínquo março de 1933, Franklin Roosevelt pode apresentar-se à Nação,
apenas dez dias depois da posse, como um Presidente vencedor.
Ele havia enfrentado o foco da doença in loco, submetera o sistema bancário e vencera o primeiro round.
A incerteza fora duramente atingida.
No domingo, dia 12 de março –insista-se, apenas nove dias depois da posse-- estreou seu programa “Conversa junto à Lareira”.
Passaria a usar o alcance avassalador da radiofonia então para conversar diretamente com a sociedade.
Um bolivariano après la lettre.
O Presidente tinha o que dizer e milhões queriam ouvi-lo.
Sua
palavra estava sintonizada com o espírito das ruas e viria reforçar a
espiral da auto-confiança em diferentes setores e segmentos.
As
filas no guichê dos bancos já não eram mais para sacar depósitos. Agora
elas reuniam cidadãos trazendo de volta suas economias. O Estado
devolvera a garantia aos pequenos e a segurança aos investidores.
Roosevelt foi além, na tarefa de devolver otimismo a uma sociedade acuada e sem futuro.
Não se limitou a medidas rotineiras, nem confiou o imaginário da sociedade aos “canais convencionais’ da mídia aterrorizante.
Cada
vez que falava à Nação, a voz do democrata dizia coisas inteligíveis à
angústia do pai de família que acordara empregado e fora dormir com medo
da demissão.
Suas mensagens e políticas pavimentavam o longo prazo sem negligenciar a emergência.
Traziam respostas para o presente e assim injetavam solidez à marcha do futuro.
Multiplicar
providências imediatas para sacudir a sociedade entorpecida pela
incerteza e a descrença, esse foi o seu objetivo ao criar a
Administração para o Progresso do Trabalho.
Com ela encarou o desafio de enxugar a inundação de desemprego que afogava as famílias, as cidades e o interior do país.
A
mensagem era simples e convincente: os EUA foram divididos em zonas
salariais; para cada uma delas fixou-se um seguro-desemprego; o governo
passou a contratar até três milhões de trabalhadores por ano, em troca
desse pagamento.
A nova força-tarefa semearia canteiros de obra
pelo país; estradas, ruas, escolas, canalizações, hospitais, parques
infantis, pontes, caminhos vicinais foram recuperados, expandidos e
construídos.
A Administração para o Progresso do Trabalho ganhou um braço cultural.
Em
um mês –sim, 30 dias-- inauguraria 100 mil salas de alfabetização com
um milhão de adultos inscritos na luta contra o analfabetismo.
Artistas e escritores desempregados foram contratados.
Sua
mobilização desencadearia uma revolução cultural ampliando as franjas
de apoio progressista ao governo, taxado de comunista pela direita
raivosa e a mídia cínica.
O Presidente também convocou a
juventude. Milhares de jovens foram incorporados a serviços florestais
dando vida a planos de replantio de matas, preservação e proteção de
bosques.
O democrata austero continuou falando ao futuro e à angústia do presente.
Na Conversa ao Pé da Lareira de outubro de 1933, Roosevelt deu um aviso ensurdecedor aos ouvidos da crise.
Um aviso do Estado aos mercados selvagens.
Qualquer
família norte-americana, disse, ameaçada de perder a casa em que mora, a
terra, ou seus pertences por conta da crise, deve telegrafar
imediatamente para a Administração de Crédito Rural ou à Companhia de
Empréstimo aos Proprietários de Residência.
‘Ela receberá o auxílio de que necessita’.
Para
além das discussões técnicas sobre a viabilidade ou não de um novo New
Deal, sobretudo na periferia do capitalismo, há uma lição de extrema
atualidade a extrair dessa prontidão exibida pelo governo democrata de
Franklin Roosevelt.
Ele tinha a exata noção de que, diante da
lógica de uma crise, o Estado não pode se entregar à busca de
indulgência. Antes de sensatez, a rendição nessas circunstancias agrava a
escala dos problemas e contrata mais incerteza.
Fiel ao
paradigma do desassombro, associado ao realismo, em vez incorporar o
turbilhão da desintegração social, Roosevelt foi além.
Convocou
os trabalhadores a se organizarem em sindicatos, concedendo incentivos e
promulgando decretos que legalizariam a maciça sindicalização dos
assalariados norte-americanos.
Ademais de afrontar a lógica dos
mercados ensandecidos, portanto, o legendário presidente norte-americano
fomentou uma organização correspondente da sociedade.
Intuitivamente,
apesar de domar os mercados com a rédea curta da ação estatal, ele
sabia que nenhum país sai de fato de uma crise histórica sem um
protagonista social que o conduza.
Foi excomungado pela direita, acusado de comunista pela mídia conservadora.
Seria reeleito mais três vezes pelos norte-americanos.
Há o que aprender ainda com Franklin Roosevelt."
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