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(Imagem: Pragmatismo Político) |
"Marginalzinho: a socialização de uma elite vazia e
covarde. Parada em um sinal de trânsito, uma cena capturou minha atenção
e me fez pensar como, ao longo da vida, a segregação da sociedade
brasileira nos bestializa
Rosana Pinheiro-Machado, Carta Capital / Pragmatismo Político
Era a largada de duas escolas que estavam situadas uma do lado da outra, separadas por um muro altíssimo de uma delas. Da escola pública saíam crianças correndo, brincando e falando alto. A maioria estava desacompanhada e dirigia-se ao ponto de ônibus da grande avenida, que terminaria nas periferias. Era uma massa escura, especialmente quando contrastada com a massa mais clara que saia da escola particular do lado: crianças brancas, de mãos dadas com os pais, babás ou seguranças, caminhando duramente em direção à fila de caminhonetes. Lado a lado, os dois grupos não se misturavam. Cada um sabia exatamente seu lugar. Desde muito pequenas, aquelas crianças tinham literalmente incorporado a segregação à brasileira, que se caracteriza pela mistura única entre o sistema de apartheid racial e o de castas de classes. Os corpos domesticados revelavam o triste processo de socialização ao desprezo, que tende a só piorar na vida adulta.
Mas eis que, de repente, um menino negro, magro e sorridente, ousou subverter as regras tácitas. Brincando de correr em ziguezague, ele “invadiu” a área branca e se esbarrou num menino que, imediatamente, se agarrou desesperadamente no braço da mulher que lhe buscara. Foi um reflexo automático do medo. O menino “invasor” fez um gesto de desculpas – algo como “foi mal” -, e voltou a correr entre os seus, enquanto que a outra criança seguia petrificada.
No olhar do menino “invadido”, havia um misto de medo, de raiva, mas principalmente, de nojo – como que se a outra criança tivesse uma doença altamente contagiosa. Não é difícil imaginar o impacto de esse olhar no inconsciente do menino negro e pobre. Este aprendia, desde muito cedo, que era um intocável, que vivia em uma sociedade na qual seu corpo, na esfera pública, valia menos que o de um menino da mesma idade, que ainda não tinha nenhum mérito conquistado, apenas privilégios herdados. As consequências desse gesto minúsculo serão trágicas para o menino “invadido“, pois é vítima da ignorância social. Mas será muito mais trágica para quem é negro e desprovido de capital econômico, social e cultural. Para que essa que criança não se corrompa no futuro, ela precisa ser salva do olhar de nojo.
Ah, mas os pobres da África a gente gosta
Em 2012, enquanto eu estava em Harvard, recebi a visita de uma orientanda do Brasil. Ela tirava fotos e se exibia no Facebook: “#Orgulho”, “Minha orientadora é pós-doutora por Harvard, e a sua?”. Em uma pausa, ela me perguntou em que escola eu havia estudado para ter chegado a uma universidade da elite internacional. Ela buscava identificação. Eu era um exemplo de uma mulher jovem, branca e “bem sucedida”, exatamente como ela se projetava nos próximos dez anos. Eu, sabendo que ela havia estudado do lado de dentro do muro, respondi que passei a parte mais rica da minha vida, dos 2 aos 17 anos de idade, do outro lado do muro. Ela não postou, mas bem que pensou: “#MinhaOrientadoraÉMarginalzinha…”.
A reação dela era de decepção, vergonha e certa pena de mim. Ela ficou
vermelha, desconcertada, sem chão. Engasgou-se e começou a tossir para
disfarçar a cor de suas bochechas. Isso tudo porque ela sabia muito bem
que tinha passado aproximadamente quinze anos de sua vida chamando
pessoas como eu de “tigrada”. Ela se socializou negando a
alteridade e, portanto, nunca imaginou que a relação de poder entre os
atores dos diferentes lados do mundo se inverteria. Tudo que ela havia
aprendido sobre aquele Outro era simplesmente de que se tratava de uma
não-persona. O motivo pelo qual o seus vizinhos tinham menos do que ela
não cabiam em sua imaginação. Fazendo parte da meritocracia sem mérito,
ela simplesmente merecia ter o que tinha.
Ironicamente, essa aluna estava voltando de um programa voluntário para ajudar uma comunidade miserável de Ruanda. Havia poesia – e alívio cristão – em (arrogantemente) querer salvar a África. Por algum motivo, os pobres e negros do lado de lá do oceano (que não assaltariam a sua caminhonete já adquirida aos 21 anos) eram mais dignos de sua profunda bondade do que os pobres e negros que ela havia ignorado por toda a sua existência.
Entender que o pobre do lado tem o mesmo valor do pobre da África é uma tarefa para uma vida toda, pois envolve uma postura política de grandeza reflexiva intelectual e o reconhecimento de nossa responsabilidade sobre o Outro. Reclama-se da ineficiência do Estado brasileiro, mas toda a violência estrutural gerada por este Estado é reproduzida por sujeitos covardes e apáticos que negam, estigmatizam e inviabilizam o Outro.
Desde pequena eu aprendi que a violência é holista. As elites não são vítimas da violência urbana. A agressão sofrida é a mesma que se pratica. O olhar de nojo é também assassino. E os muros ferem mais do que protegem. Será que as pessoas imaginam o quanto podem crescer derrubando muros?"
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