A resposta ao arrocho

"Contrapor-se ao discurso padrão de uma época nunca foi tarefa simples. A politização do embate econômico é a pedra de toque desta campanha

Saul Leblon, Carta Maior

Numa sequência de pronunciamentos encadeados entre a quinta e a sexta feira  da semana passada, Lula e Dilma começaram  exercitar a politização de um tema divisor da campanha presidencial de 2014.

Está em jogo a apresentação de uma alternativa crível  ao arrocho neoliberal, vendido como um misto de panaceia e fatalidade pelo conservadorismo  brasileiro.

Contrapor-se ao discurso padrão de uma época nunca foi tarefa simples.

Mais complexa ainda é a sua tradução para uma narrativa popular numa sociedade dominada por um oligopólio midiático de conhecido alinhamento ideológico com as causas dos endinheirados.
A politização do embate econômico é a pedra de toque capaz de romper a falsa aparência de consenso que reveste a defesa do interesse particular como se fosse o de todos os brasileiros.

Foi isso que Dilma e Lula começaram a fazer. É isso que precisa ser aprofundado até a boca da urna de outubro.

Trata-se de romper o jogo de espelhos que hipnotiza a sociedade impedindo-a de enxergar além da muralha que aprisiona seu potencial, sua criatividade e  seus recursos.

O Brasil está no meio do caminho de se enxergar com os  próprio olhos.

Reconhecida pelo FMI como a nação que mais reduziu o desemprego em pleno colapso mundial –11 milhões de vagas foram criadas  desde 2008, enquanto o mundo fechava mais de 60 milhões de postos de trabalho--  o país, todavia, é estigmatizado  como a ovelha negra pelo padrão ortodoxo.

Assim tem sido tratado pelos candidatos do peito dos mercados nesta eleição.

Nos salões elegantes o lamento é unânime: ‘o quase pleno emprego vigente na economia impede que os ganhos de produtividade se façam pelo método tradicional’. Qual? A compressão dos holerites, também chamado arrocho, impulsionado pela  rotatividade  descendente da mão de obra assalariada.

A ‘purga’  trabalhista e social é acenada como elixir paregórico  capaz de devolver ‘eficiência’ à indústria, moderação aos preços (pelo garrote sobre a demanda) e equilíbrio fiscal (com a depreciação do salário mínimo e, por tabela, dos benefícios aos aposentados da previdência).

 Entre os doutores da ‘racionalidade’, a arrochoterapia  é anunciada como um tratamento obrigatório após as eleições, ganhe quem ganhar.

O ‘consenso’  não conta com a anuência da candidata que lidera a disputa, nem do seu principal cabo eleitoral.

No evento na CUT, 6ª feira passada, Dilma flechou: ‘Nosso remédio para os males do Brasil não passa pelo desemprego’.

Falando ao seu lado no dia seguinte, em Montes Claros (MG), no primeiro comício da campanha,  Lula reiterou: ‘Dilma sabe que a inflação prejudica exatamente a população que vive de salário. Ela quer provar que é possível controlar a inflação sem ter desemprego e sem ter arrocho salarial (como preconiza o PSDB)’.

A determinação encerra desafios apreciáveis.

 Ao resistir à ‘destruição criativa’ promovida pela maior crise do capitalismo desde 1929, o Brasil tornou-se de fato um paradoxo.

 Enquanto a participação do trabalho na renda esfarela em boa parte do mundo, aqui ela cresceu  desde 2008.

 Em boa parte, segundo o Ipea, por conta do ganho real de poder de compra do salário mínimo, que teve um aumento de 70% acima da inflação, desde 2003.

 Sob governos do PT , a renda dos  10% mais pobres  deu um salto de 91,2%.  A parcela endinheirada ficou com um ganho da ordem de 17%.

Estamos falando do fluxo da riqueza, sem mexer ainda nos estoques acumulados.

 Uma parte da distribuição promovida desde 2003, porém, tem vazado para os mercados ricos,  através das importações baratas que sufocam a manufatura brasileira. Por tabela depreciam os salários ao gerar um número menor de vagas no setor industrial, que paga melhor e irradia produtividade a todo o sistema econômico.

 25% do consumo atual de manufaturados no Brasil tem origem em mercadorias importadas.

 O déficit comercial específico nessa área foi de US$ 105 bi no ano passado.

 A solução conservadora é martelada sem trégua pelo seu aparato emissor.

 O Brasil precisaria, segundo essa visão,  de um choque de juros e de um aumento do desemprego; mais um arrocho de gastos públicos.

Finalmente, necessitaria de uma abertura comercial ampla, com cortes de tarifas, câmbio livre e mobilidade irrestrita para os fluxos de capitais.

 O conjunto, assegura-se, permitiria desmantelar a couraça de ‘atraso’ e custo elevado  --o ‘populismo lulopetista’  que impede o  país de  voltar a crescer com eficiência e a competitividade.

Não se explica crescer para quem, nem como a partir daí.

 Trata-se, em síntese, de trazer para o país os  desdobramentos da crise mundial  que o PT tenta evitar desde 2008, e de faze-lo  na forma de um grande  arrocho em dose única – ‘no primeiro ano; se possível, no primeiro dia’, promete Aécio às plateias empresariais.

As intervenções de Dilma e Lula colocam um pé na porta que ameaça interditar o futuro da população com um longo ferrolho de arrocho e desemprego.

O desafio é convencer o eleitor de que desmontar a tranca não é tarefa exclusiva dos  sábios da macroeconomia. O impulso da alavanca depende de um maior  discernimento da sociedade, capaz de engajá-la  na repactuação das bases do desenvolvimento.

Alimentar essa engrenagem é a tarefa progressista nesta campanha.

A aposta exige  forte coordenação do Estado e a ampliação da democracia participativa para funcionar.

Mais que nunca vale o mandamento: política é economia concentrada.

Nas discussões em curso dentro e fora da academia, algumas estacas começam a delinear  o caminho ainda a ser debulhado em linguagem popular nos palanques e na televisão; a saber:

1. Evitar a recessão evocada pelo conservadorismo -- Preservar o mercado de consumo de massa ampliado desde 2003 é crucial para se ter um trunfo na reordenação do crescimento. Dispor de um mercado interno em expansão  é  o principal diferencial do Brasil  num mundo em crise, capturado pelo binômio da demanda rastejante associada à baixa atividade produtiva. É isso que o conservadorismo quer importar para cá como lacto purga para restaurar o império dos livres mercados sobre os anseios da sociedade.

2. Não errar o diagnóstico da inflação --Arrochar salário e crédito para derrubar a  inflação é um erro.  A  inflação de alimentos, bem como as pressões decorrentes  do custo da energia, tem origem na seca, não na exacerbação da demanda. E os indicadores estão em queda.

3. O ajuste cambial possível -- O dólar baixo que desequilibra a balança comercial reflete, em primeiro lugar, a fraca recuperação mundial e a inundação de liquidez nos mercados globais, que já ensaia novo ciclo de bolhas. É possível recuperar alguma margem competitiva com uma dose combinada de desvalorização cambial e redução do juro , a partir do próximo ano, quando a inflação climática perder seu ímpeto. Mas  as projeções para o comércio mundial são pouco animadoras. As cotações das commodities, sobretudo grãos, segundo a FAO,  tendem a recuar ainda mais nos próximos dois anos. Os superávits comerciais elevados da última década que ampliaram a margem de manobra do desenvolvimento brasileiro  não devem se repetir. Daí a importância de se preservar o dinamismo interno como condição indispensável para reordenar o crescimento econômico.

4. Em vez de arrocho fiscal, corte de juros –  A despesa fiscal que pode ser contida é o gasto com o juro da dívida pública, que devora cerca de  5% do PIB  ao ano. As demais despesas são incomprimíveis. Há espaço para cortar juros em linha com um recuo da inflação de alimentos. A relação dívida bruta/PIB permanece estável no Brasil desde 2004, em torno de 57%. Não se justifica que o país tenha uma das três maiores taxas de juros do planeta. Nos países desenvolvidos, a relação dívida/PIB saltou de 80,4% para 108,5% desde 2004. A taxa de juro elevada  impede operações de longo prazo: os bancos não emprestam para projetos de investimento de 20 e 30 anos. Criou-se um círculo de ferro: o desestímulo ao investimento produtivo serve, ao mesmo tempo, como incentivo à atividade rentista; que por sua vez deixa o crescimento  na dependência exclusiva do consumo. Quebrar esse torniquete requer quebrar o dogma conservador do juro alto.

5. Controle de capitais --  As linhas de passagem para um corte sustentado dos juros incluem: a) salvaguarda contra fugas de capitais na forma de uma regra de ingresso que estabeleça uma permanência mínima no país; b) forte incentivo à produtividade industrial para reduzir o peso dos importados no consumo interno. Porém, sem ilusões: o Brasil não será capaz de suplantar a competitividade asiática em boa parte das linhas de consumo já abocanhadas pela oferta oriental; a ênfase das políticas de desenvolvimento industrial deve recair sobre setores nos quais o fôlego manufatureiro ainda resiste. O equilíbrio entre importações e contas externas terá que ser modulado com a maturidade das exportações do pré-sal; o forte incremento na industrialização de commodities e saltos de inserção em cadeias globais nas quais a competitividade brasileira é real –caso da aeronáutica, por exemplo, emas também setor de energia e serviços (grandes obras). Arrochar  o mercado interno como forma de equilibrar a balança comercial, ao contrário, sepultaria de vez o atrativo ao investimento representado pela pujança da demanda popular.  Sobretudo, porém, não teria nenhum efeito positivo sobre a relação de troca desfavorável, fruto de um horizonte de queda nos preços das commodities. A receita ortodoxa simplesmente engessaria a economia de vez, privando-a de uma das poucas alavancas de comando endógeno que ainda restam ao país."

Comentários