"O governo de Israel não gosta da comparação mas em vários aspectos Gaza já lembra o Gueto de Varsóvia
Marcelo Zero, ISTOÉ
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, acusou o Brasil de ser um “anão diplomático”. Tudo isso porque o governo do Brasil, chocado, como todo o mundo, com a ofensiva genocida das forças de Israel em Gaza, chamou de volta seu embaixador em Tel-Aviv para consultas.
Aparte a vulgaridade quase anedótica do ventríloquo bufão, essas
são afirmações que intrigam pessoas com um mínimo de informação.
Em primeiro lugar, porque foi justamente um representante da nossa
diplomacia “anã”, Oswaldo Aranha, que presidiu a sessão da Assembleia
Geral das Nações Unidas que criou o Estado de Israel. Aranha foi um dos
principais articuladores diplomáticos da Resolução da Assembleia Geral
das Nações Unidas 181, de 1947, que deu reconhecimento internacional a
Israel. Por isso, Oswaldo Aranha é nome de rua em Tel-Aviv.
Em segundo lugar, porque o Brasil sempre teve uma posição bastante
equilibrada e moderada em relação ao conflito israelo-palestino. Nosso
país reconheceu, desde o início, a existência do Estado de Israel. Ao
mesmo tempo, o Brasil é um histórico defensor da criação de um Estado
Palestino soberano, geograficamente coeso e economicamente viável,
situado nos territórios ocupados por Israel desde 1967, a saber:
Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.
Tal defesa, compartilhada por quase toda a comunidade
internacional, tem sua base jurídica em muitos instrumentos
internacionais, com destaque justamente para a mencionada Resolução da
Assembleia Geral das Nações Unidas 181, de 1947. Com efeito, essa
Resolução, que criou o Estado de Israel, assegurou, ao mesmo tempo, ao
povo palestino, o direito à criação de um Estado que conviveria
pacificamente com Israel, configurando o que se chama de “solução de
dois Estados” para aquele conflito do Oriente Médio.
Assim, o Brasil historicamente se posicionou em relação àquele
conflito com muita moderação e tomando como base fundamental as
resoluções da ONU sobre o tema. Essas resoluções são claras: os
israelenses têm direito ao seu Estado, mas os palestinos também.
Ademais, a ONU condenou explicitamente a ocupação, por parte de Israel,
dos territórios palestinos e dos territórios de outros países tomados
após a guerra de 1967. De fato, tanto o Conselho de Segurança das Nações
Unidas, através da sua Resolução 497, quanto a Assembleia Geral, que
aprovou moção de apoio à essa Resolução , condenaram taxativa e
reiteradamente a ocupação ilegal.
Além de se posicionar de forma equilibrada sobre o
tema, tomando como parâmetros as resoluções da ONU relativas ao
conflito, o Brasil sempre deu firme apoio a todas as iniciativas
destinadas à retomada das negociações de paz. Desse modo, o nosso país,
em consonância com a comunidade internacional, apoiou os entendimentos
alcançados no segundo Acordo de Oslo (1995), na Iniciativa Árabe de Paz
de Beirute (2002), no chamado “Mapa do Caminho para a Paz” (2003), na
“Iniciativa de Genebra” (2003) e nas outras que as sucederam.
Assim sendo, cabe aqui a pergunta: quem é o anão
diplomático nessa história? O Brasil, que apoia as resoluções da ONU e
as tentativas de negociação, ou Israel, que as descumpre
sistematicamente, manifestando desprezo pela comunidade internacional?
No plano externo, Israel usa somente dois argumentos
de peso: seu poderoso exército e o apoio incondicional dos EUA e seus
aliados. No que tange aos palestinos, a “diplomacia” israelense se
resume a isso. Convenhamos: é muito pouco para quem acusa o Brasil de
nanismo diplomático.
Se há uma crítica que se pode fazer ao Brasil, é
precisamente a contrária à que fez o ventríloquo bufão. Uma posição
muito equilibrada, relativamente a um conflito com correlação de forças
tão assimétricas, tão desproporcionais, pode beneficiar o forte, em
detrimento do fraco. Fica cada vez mais claro que tanto o Brasil quanto
os demais países precisam assumir uma posição mais incisiva, no que
tange à defesa do sofrido povo palestino.
Esse povo, que não tem Estado, território coeso,
economia viável e nem forças armadas vem sendo submetido ao que Ilan
Pappé, historiador israelense, denominou apropriadamente de “genocídio
incremental”. Aos poucos, o governo de Israel vai colonizando quase
toda a Cisjordânia, tomando as poucas terras remanescentes dos
palestinos, e sitiando 1,8 milhão pessoas na estreita Faixa de Gaza.
O governo de Israel não gosta, mas não há como
deixar de comparar Gaza a um gueto. A situação lá não é igual à do gueto
de Varsóvia, mas, aos poucos, está se aproximando bastante.
Gaza sofre um bloqueio impiedoso há sete anos, que
devasta sua precária economia e submete a população a sofrimentos
indizíveis. Há falta de água e de energia. Há fome e falta de remédios.
A taxa de desemprego é de 40% e os palestinos que lá moram não podem
manter contato regular com seus familiares na Cisjordânia. Praticamente
todo o comércio externo foi cortado.
Até mesmo a pesca foi severamente
restringida pelo governo de Israel. Para não morrer, a população de Gaza
depende da ajuda internacional, que chega a conta gotas, e de precários
túneis pelos quais entram alimentos e remédios. Justamente os túneis
que o governo de Israel quer fechar.
Gaza é hoje uma gigantesca prisão. Uma prisão já
condenada pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações
Unidas e pelo comitê da Cruz Vermelha Internacional, entre vários
outros. Gaza é uma crua ofensa à consciência do mundo.
Ante tal situação dantesca, não resulta difícil
entender que o Hamas eventualmente dispare seus precários e primitivos
foguetes Qassam contra Israel, sem nenhum sucesso, já que esses
artefatos são facilmente destruídos pelo sofisticado sistema antiaéreo
israelense.
Portanto, classificar a atual ofensiva genocida do
governo de Israel em Gaza, que já matou 800 pessoas, incluindo mulheres e
crianças, como uma resposta apropriada ao Hamas, justificada pelo
direito à autodefesa, é uma manifestação de nanismo intelectual. Não é
apenas desproporcional.
Simplesmente não é autodefesa. É ataque
indiscriminado que atinge especialmente a população civil inocente de
Gaza, já massacrada cotidianamente pelo bloqueio.
Não é uma guerra. Trata-se de uma política
deliberada de sufocação e aniquilamento. É o “genocídio incremental”,
que, às vezes, não é tão incremental assim.
É por isso que o governo de Israel, mesmo contando
com a simpatia da mídia ocidental, vem perdendo, nos últimos anos, apoio
na opinião pública internacional e na opinião pública brasileira. Ao
convocar seu embaixador, o governo do Brasil está somente entrando em
sintonia com o que pensa e sente boa parte de sua população.
Contudo, o principal problema do governo que chama o
Brasil de “anão diplomático” é o seu nanismo moral. No dia seguinte em
que acusou o Brasil de “anão diplomático”, o governo de Israel
bombardeou uma escola das Nações Unidas em Gaza, manifestando, dessa
forma, todo o seu apreço à diplomacia, ao multilateralismo e à
comunidade internacional.
Desconhecemos manifestação do ventríloquo bufão
sobre esse crime. Mas, no placar da diplomacia mundial, a
desproporcionalidade já é gritante.
Brasil 10x Israel 0."
Marcelo Zero é diplomado em Ciencias Sociais pela UnB e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores
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