A intolerância, a incivilidade e a ignorância

Ricardo Kotscho, Balaio do Kotscho

"Eu não sou obrigado a te ver!", respondeu-me na fila do caixa o senhor bem vestido, mais ou menos da minha idade, quando ostensivamente  passou à minha frente na fila e eu lhe perguntei se ele não tinha me visto. Já já esticando o braço para entregar seu cartão ao caixa da lanchonete no Conjunto Nacional, na avenida Paulista, no coração de São Paulo, ele fez que não me viu e repetiu a frase. Fiquei perplexo e só pude lhe dizer: "Pobre Brasil..." O sujeito quis saber por que, e tive que lhe explicar: "Por ter gente como você". Com o braço na tipoia, ainda me recuperando de uma cirurgia complicada no cotovelo, não tinha como lhe dar o que merecia, um murro na cara.

Esta cena, cada vez mais comum nos dias em que vivemos, aconteceu na noite de quarta-feira, após o lançamento do livro "1964 _ O Golpe", do meu amigo Flávio Tavares, que pretendo ler neste feriadão. Ainda não tinha me recuperado da agressão anterior, na mesma noite. Ao descer do carro na alameda Santos, esperei o farol fechar, a rua estava vazia e, de repente, do nada, apareceu um carrão preto, com farol alto, buzinando bem em cima de mim, e o feliz proprietário ainda me xingou. Não acreditei naquilo. Xingar este cara de animal, como eu fiz, é ofender os animais.

No debate que antecedeu a noite de autógrafos na Livraria Cultura, Walcyr Carrasco, o festejado autor de novelas, contou que, ao incluir em sua última novela um merchandising cultural sobre o livro "Meus 13 dias com Che Guevara", também de Flávio Tavares, foi fuzilado pela internet por ter tido a ousadia de citar o nome do lendário guerrilheiro no horário nobre.

Que se passa? No caminho de volta para casa, fiquei pensando nos três "i" _ os tantos episódios de intolerância, incivilidade e ignorância explícitas que tenho presenciado sempre que saio de casa na maior cidade do país. Sem falar na guerra do trânsito, em que cada motorista se acha o dono da rua e também finge que não vê os outros, dando fechadas, avançando sinais, fechando cruzamentos e buzinando, por toda parte e em todos os círculos sociais, esta praga está se espalhando.

Vão dizer que este é um problema que só pode ser resolvido quando a educação de qualidade em nosso país for universalizada. A meu ver, porém, não se trata só da educação formal porque, na maioria destes casos, os personagens são pessoas que cursaram até boas faculdades, mas não aprenderam o básico: a viver em sociedade, respeitando os outros, não tratando como inimigo quem pensa diferente, não querendo levar vantagem em tudo. A meu ver, trata-se mais de uma questão cultural e de falta de caráter. Não basta ter diploma.

Do trânsito cada vez mais brutalizado, aos protestos de toda ordem que se multiplicam, impedindo nosso direito de ir e vir, às greves em setores essenciais, às conversas nos bares em que se quer ganhar discussões no grito, na falta de solidariedade com os mais necessitados, à baixaria na internet, aos desmandos e malfeitos em todas as latitudes dos três poderes, o panorama humano está ficando cada vez mais assustador.

Por isso, nada como um feriadão pela frente para dar uma respirada e refletir sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas e o nosso país. Apesar de tudo, boa Páscoa a todos. Até terça, ou a qualquer momento em edição extraordinária do Balaio.

Enquanto eu descanso um pouco, vocês poderiam atualizar este nosso espaço contando outras histórias de intolerância, incivilidade e ignorância, que não devem faltar nas cidades em que vivem. Ou contar alguma história boa de alguém que está conseguindo escapar deste vale tudo em que, ao final, todo mundo vai sair perdendo."

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