“Pressão contra Haddad envolve soberania
popular e democracia
Paulo Moreira Leite, ISTOÉ
Muitas vezes, os golpes contra a democracia são
movimentos óbvios e visíveis, ilustrados por tanques de guerra, baionetas
e generais. Vivemos tempos em que a consciência democrática dos povos rejeita
ataques frontais a seus direitos e é capaz de sair às ruas para defender
conquistas históricas e permanentes.
São tempos de judicialização, quando
forças conservadoras, sem voto, batem a porta dos tribunais para ameaçar
a soberania popular, ignoram a vontade do cidadão e procuram resolver, às suas
costas, o que é melhor para um país, um Estado, uma cidade.
A Constituição diz, no artigo 1, que
todos os poderes emanam do povo, e são exercidos através de representantes
eleitos – ou diretamente, na forma da lei.
Penso nisso diante da mais recente
cena do Superior Tribunal Federal. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad,
eleito de forma límpida e clara em 2012, foi obrigado a apresentar recurso para
Joaquim Barbosa anular uma liminar da Justiça de São Paulo que proíbe a
cobrança do aumento no IPTU, principal fonte de recursos da prefeitura da maior
cidade do país.
Vamos combinar: já é absurdo que um
prefeito que recebeu 55% dos votos no segundo turno seja obrigado a fazer uma
caravana até Brasília para fazer valer seu direito de definir como pretende
governar São Paulo.
É ainda mais absurdo, no entanto, que
a palavra final fique com a Justiça.
Não há nenhum aspecto, neste debate,
que envolva matéria constitucional. Do ponto de vista eleitoral, Haddad pode
estar até ajudando a colocar uma pedra na reeleição de Dilma Rousseff, como
acreditam tantos petistas de olho em 2014, mas este é um debate entre o
prefeito e seu partido.
A questão aqui envolve princípios e
nunca é demais lembrar a visão que explica que os bons princípios são aqueles
que podem ser defendidos inclusive quando contrariam nossos interesses.
O IPTU é um imposto tradicional das
cidades brasileiras, com alíquotas que sobem e descem de acordo com as
prioridades de cada prefeito. Minha opinião é que o STF tem obrigação de
devolver o assunto a quem foi eleito para isso – o prefeito e a Câmara de
Vereadores, que já tomou posição a favor do aumento, também.
Essa situação elimina o mais maroto
dos argumentos favoráveis a judicialização, aquele que admite que é um caminho
errado, mas diz que a Justiça só entra em cena por causa da omissão dos demais
poderes.
Qualquer passo em falso, nessa
matéria, representará um ataque à vontade popular.
O recurso alternativo, de cozinhar o
assunto numa sopa de oportunidades durante meses sem fim, será, na prática, uma
forma de atender a pressão contra o aumento do IPTU, privando a cidade de
recursos que o prefeito julga serem necessários – foi ele o escolhido por 3,3
milhões de eleitores para resolver isso.
Ao dar a liminar contra o aumento, o
Tribunal de Justiça de São Paulo alegou, como causa principal, a “falta de
debate público” sobre o tema.
Desculpe mas pensei que isso tinha
ocorrido na eleição. Quer dizer que tivemos o horário político, os debates
eleitorais em todos os canais de TV e é possível alegar que “faltou
debate?”
Depois de protestos de junho, onde a
questão do transporte coletivo teve um destaque óbvio, será razoável bloquear receitas
para investimentos que, por caminhos diversos, irão enfrentar este problema?
Nem nos tempos de George Bush, pai,
aquele presidente dos EUA que mandou a população fixar o olho em seu lábios
enquanto ele dizia vagarosamente não-haverá-mais-impostos durante a campanha,
para mudar de ideia depois da posse na Casa Branca ouviu-se um argumento
desses. Tão subjetivo, digamos assim.
O debate sobre impostos maiores e
menores faz parte do cotidiano político das democracias e, salvo nas ditaduras,
sempre foi resolvido pelo eleitor. Fernando Henrique Cardoso fez a carga
tributária subir de 24% do PIB para 35%. Foi assim que seu governo conseguiu
manter o célebre equilíbrio fiscal. O Supremo não deu um pio, nem poderia
nem deveria.
Dilma Rousseff desonerou vários
setores da economia. Nos Estados municípios, governadores e prefeitos
criam e eliminam incentivos fiscais. É possível debater a oportunidade de cada
uma dessas medidas. Mas seria absurdo questionar o direito de autoridades
eleitas de resolver uma questão fundamental do funcionamento do Estado.
O Estado do bem-estar europeu não foi
construído com recursos espirituais, mas com impostos retirados dos mais
ricos – inclusive sobre grandes fortunas – para beneficiar os mais pobres. Imagine
se eles fossem bater as portas dos tribunais para revogar as decisões? Como
mostra o grande pensador Tony Judt, a Europa estaria nos braços negros do
fascismo até hoje.
A contra revolução conservadora
patrocinada por Ronald Reagan, nos EUA, tinha como base o corte de impostos da
classe média alta e dos ricos. Ninguém foi à Corte Suprema por causa
disso. Podemos até não gostar, mas era o voto que naquele momento dava
autoridade a Reagan. O mesmo aconteceu na Inglaterra, nos anos de
Margareth Thatcher. A população chegou a fazer uma revolta popular quando ela
criou uma taxa que tungava fundo no orçamento da população dos bairros mais
pobres – a palavra final coube ao eleitor.
A questão do IPTU paulistano
foi levada ao Supremo por esses caminhos que sempre são percorridos por quem
não tem respaldo na vontade popular. Não foi por acaso de Haddad mencionou a
eliminação da CPMF, ocorrida no segundo mandato do governo Lula.
Naquele momento, a mesma FIESP já
presidida pelo mesmo Paulo Skaf participou da operação que acabou com a CPMF
através do Congresso. A ação nada teve de democrática. Os deputados tinham medo
de não conseguir reeleger-se no pleito seguinte depois de apoiar uma medida tão
perniciosa para a população mais pobre e queriam dinheiro para mudar de lado. Foi
um escândalo, conforme apurou a Polícia Federal na Operação Castelo de Areia.
Com base na investigação do caixa 2
de uma das maiores empreiteiras do país, descobriu-se o pagamento de
propinas imensas a uma larga fatia do Congresso. Feito o serviço com os
parlamentares, chegou a hora de pedir ajuda a Justiça para se impedir a punição
dos responsáveis.
Havia montanhas de diálogos gravados,
comprometedores e vergonhosos. Mas as principais peças de acusação foram
anuladas, pois haviam sido obtidas sem autorização judicial. Resultado: o STF
anulou as provas e ficou tudo por isso mesmo. Está certo? Está, por mais que
seja chato admitir isso. A democracia tem seus rituais, e um deles informa que
os direitos dos cidadãos, mesmo aqueles acusados de crimes gravíssimos, devem
ser respeitados.
E é em nome dos mesmos rituais que (
putz! ) ajudaram a salvar até aqueles tubarões que derrubaram a CPMF, mas em
função de uma causa muito melhor, que se deve devolver as prerrogativas
democráticas a quem tem o direito de falar pelo povo.
A alternativa é a ditadura judicial.
Este é um sistema que até pode conviver com algumas franquias democráticas mas,
toda vez em que os ricos e poderosos se consideram atingidos em seus direitos,
oferece acesso especial e personalizado para revogar medidas que não são de seu
interesse.’
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