"Introdução
de Liberdade de Expressão: as várias faces de um
desafio, de
Venício A. de Lima e Juarez Guimarães (orgs.), 200 pp., Editora Paulus, 2013;
R$ 25; título original “Política e comunicação se constituem mútua e
geneticamente”
Juarez Guimarães e Venício A. de Lima,
Observatório da Imprensa
Há seguras e convincentes razões para que a universidade brasileira reflita,
discuta e pesquise o que é a liberdade de expressão e os modos de criá-la,
garanti-la e promovê-la nas sociedades democráticas.
Há hoje, nos planos internacional e nacional, um largo dissenso
sobre se o Estado deve estabelecer regulações sobre a propriedade e os modos de
funcionamento dos meios de comunicação de massa, sobre os limites e sentidos da
atuação do Estado neste campo tão decisivo para a democracia. Este dissenso
democrático em geral se apóia sobre diferentes tradições de entendimento do que
vem a ser a liberdade de expressão.
A opção por dogmatizar o conceito de liberdade de expressão, de
afirmá-lo de modo unidirecional e fundamentalista, de naturalizá-lo de forma
antipluralista revela um contrassenso absurdo. Por esta dogmática discutir a
liberdade de expressão seria desde já ameaçá-la, colocá-la em risco. Como se a
liberdade de expressão pudesse negar a expressão da liberdade... em discuti-la.
Pelo contrário, o debate acadêmico e público sobre a liberdade de
expressão só pode alentar, esclarecer e desenvolver as teorias da democracia. Se
o direito ao voto universal – sem exclusões de gênero, de renda ou de
escolaridade – marcou toda uma época histórica de construção da democracia, o
direito à voz pública, de falar e ser ouvido, para todos os cidadãos e cidadãs
parece estar no centro dos impasses e desafios das democracias contemporâneas.
Este livro, fruto do 1º Colóquio “Liberdade de Expressão: as várias
faces de um desafio”, realizado na UFMG em março de 2013, constrói-se a partir
da visão de que a relação entre política e comunicação na Modernidade se
organiza na ordem dos fundamentos. É insuficiente pensá-las através de uma
relação interdisciplinar entre duas áreas de estudo que contém zonas de
confluência. Não se trata, pois, de pensar as relações entre política e
comunicação, mas do desafio de constituir um campo de pensamentos no qual a
própria política e a comunicação mútua e geneticamente se constituem em seus
conceitos fundamentais.
Política e comunicação são dimensões que não podem ser
analiticamente isoladas sem se perder a compreensão do próprio objeto que se
investiga. Este princípio organizador deste livro – o da relação fundante e
incontornável entre política e comunicação – não pode e não deve ser
banalizado.
Há quatro razões que nutrem a absoluta atualidade deste princípio
para o qual este livro se propõe a contribuir através de uma pauta ampla e
permanente de pesquisas e reflexões.
A primeira está na ordem de uma falta nuclear que deriva da
separação disciplinar e departamental, na teoria e na pesquisa, entre as áreas
da comunicação e da política. Existe já, no plano internacional e nacional, um
rico acúmulo de estudos teóricos e empíricos interdisciplinares entre
comunicação e política. Mas pode-se fazer um diagnóstico seguro de que a maior
parte das teorias democráticas e das teorias da comunicação contemporâneas não
pensa, em seus fundamentos, as condições comunicativas democráticas de sua
prática política nem as condições públicas democráticas de seu exercício
comunicativo.
Neste campo de pensamentos que se busca construir, o diagnóstico
desta falta é, em si mesmo, uma denúncia. Toda teoria que se pretende
democrática, mas que não pensa as dimensões públicas da liberdade de expressão,
as relações instituintes entre a constituição da cidadania e o direito à voz
pública, esbarrará em impasses ou antinomias centrais. Toda teoria da
comunicação que despolitiza o seu objeto, negando ou marginalizando as
fundações políticas da comunicação que se faz em sociedade, está na verdade optando
por conceber a liberdade de expressão como um direito que se privatiza ou que
se realiza na ordem do privado, em geral mercantil.
Sociedades centradas na mídia e em mutação
A segunda razão que conspira contra a banalização do princípio que
organiza este livro – a gênese mutuamente configuradora entre política e
comunicação social – é a do diagnóstico que vivemos cada vez mais em sociedades
centradas na mídia e em processo dinâmico de mutação.
A mídia ocupa uma posição de centralidade nas sociedades contemporâneas,
permeando diferentes processos e esferas da atividade humana, em particular a
esfera da política.
A noção de centralidade tem sido aplicada nas ciências sociais
igualmente a pessoas, instituições e ideias-valores. Ela implica na existência
de seu oposto, vale dizer, o periférico, o marginal, o excluído, mas, ao mesmo
tempo, admite gradações de proximidade e afastamento. Pessoas, instituições e
ideias-valores podem ser mais ou menos centrais.
Um pressuposto para se falar na centralidade da grande mídia
(sobretudo a eletrônica) nas sociedades é a existência de um sistema nacional (network)
consolidado de telecomunicações. A maioria das sociedades urbanas
contemporâneas pode ser considerada como “centrada na mídia” (media centric),
uma vez que a construção do conhecimento público que possibilita a cada um de
seus membros a tomada cotidiana de decisões nas diferentes esferas da atividade
humana não seria possível sem ela.
Um bom exemplo dessa centralidade é o papel crescente da mídia no
processo de socialização e, em particular, na socialização política. A
socialização é um processo contínuo que vai da infância à velhice e é através
dele que o indivíduo internaliza a cultura de seu grupo e interioriza as normas
sociais.
Uma comparação da importância histórica de diferentes instituições
sociais no processo de socialização revelará que a família, as igrejas, a
escola e os grupos de amigos vêm crescentemente perdendo espaço para a mídia
que se transformou no “educador coletivo” onipresente.
Todavia, o papel mais importante que a mídia desempenha decorre do
poder de longo prazo que ela tem na construção da realidade através da
representação que faz dos diferentes aspectos da vida humana – das etnias
(branco/negro), dos gêneros (masculino/feminino), das gerações (novo/velho), da
estética (feio/bonito) etc. – e, em particular, da política e dos políticos. É,
sobretudo, através da mídia – em sua centralidade – que a política é construída
simbolicamente, adquire um significado. [As representações da realidade feitas
pela mídia compõem os diferentes Cenários de Representação (CR) que constituem
a hegemonia nas sociedades media centric. Sobre o conceito de CR ver
Lima (2004) e, especificamente sobre o Cenário de Representação da Política
(CR-P), ver Lima (2012).]
A política nos regimes democráticos é (ou deveria ser) uma atividade
eminentemente pública e visível. É a mídia – e somente ela – que tem o poder de
definir o que é público no mundo contemporâneo.
Na verdade, a própria ideia do que constitui um “evento público” se
transforma a partir da existência da mídia. Antes de seu desenvolvimento, um
“evento público” implicava em compartilhamento de um lugar (espaço) comum;
copresença; visão, audição, aparência visual, palavra falada; diálogo.
Depois
do desenvolvimento da mídia, um evento para ser “evento público” não está
limitado à partilha de um lugar comum. O “público” pode estar distante no tempo
e no espaço. Dessa forma, a mídia suplementa a forma tradicional de
constituição do “público”, mas também a estende, transforma e substitui.
Essa nova situação provoca consequências imediatas tanto para quem
deseja ser político profissional quanto para a prática da política. Isso porque
a visibilidade tem que ser disputada: (a) os atores políticos têm que disputar
visibilidade na mídia; e (b) os diferentes campos políticos têm que disputar
visibilidade favorável de seu ponto de vista.
Assim, a interação constitutiva entre mídia e política processa-se
em todas as fases do processo democrático: na construção da agenda, através do
filtro das informações publicadas, do modo de editá-las, da seleção e ênfase
das opiniões, na visibilidade e dramatização de temas selecionados; na
ponderação e presença dos próprios atores políticos, através da superexposição
de porta-vozes ou do silenciamento de outros, na apresentação positiva ou
negativa com que são noticiados, influindo assim no próprio pluralismo e
assimetrias do processo político de participação e competição política; no grau
de exposição e crítica dos governos e de suas políticas, contribuindo
decisivamente para a formação dos juízos públicos.
Mais ainda, a relação entre a política e as grandes empresas de
comunicação em geral não é de exterioridade, mas de compenetração, organicidade
e até simbiose, conformando redes doutrinárias e de interesses entre o sistema
político e o sistema de mídia. Assim fenômenos de partidarização, parcialidade,
estreitamento de pluralismo ou até censura sistemática a informações e opiniões
antagonistas não parecem ser fenômenos extraordinários e sim recorrentes e
típicos.
Mas a relação entre política e comunicação é certamente de mão
dupla. As políticas de Estado historicamente definem padrões institucionais
singulares, conformando sistemas de comunicação predominantes públicos ou
privados mercantis, incentivando ou limitando a concentração de propriedade,
concentrando ou distribuindo verbas de publicidade, regulando ou desregulando o
exercício da comunicação. Estados de origem colonial, periféricos ou
dependentes, que sofrem de um déficit de soberania, podem sofrer de um processo
sistemático de colonização midiática. Na medida em que os sistemas de
comunicação operam com massas enormes de recursos, de tecnologias em grande
escala, esta dependência das políticas e orçamentos públicos é cada vez maior. Além
disso, diferenciações estruturais de acesso à renda ou à educação, aos direitos
de gênero e étnicos, condicionam fortemente o direito à voz pública cidadã, de
falar e ser ouvido.
Esta relação simbiótica entre política e comunicação nas sociedades
modernas precisa ser necessariamente historicizada e singularizada em contextos. E, à
medida que o campo das comunicações passa por mudanças estruturais na
contemporaneidade e se alteram radicalmente as próprias bases de sua operação,
seria necessário diferenciar o que poderíamos chamar de “grande mídia” e de
“nova mídia”.
A expressão grande mídia – mídia plural latino de medium
– pode ser entendida como o conjunto das instituições que utiliza tecnologias específicas
para “intermediar” a comunicação humana. Vale dizer que a grande mídia implica
sempre na existência de uma instituição e de um aparato tecnológico para que a
comunicação se realize. Esse é um tipo específico de comunicação, realizado
através de instituições que aparecem tardiamente na história da humanidade e
constituem-se em um dos importantes símbolos da modernidade. Duas
características da comunicação da grande mídia são a sua unidirecionalidade e a
produção centralizada, integrada e padronizada de seus conteúdos.
Já a expressão nova mídia serve para designar qualquer forma
de comunicação realizada através da rede mundial de computadores, isto é, da
internet. Ao contrário da grande mídia, a nova mídia possibilita a interação on
line entre emissor e receptor através de computadores pessoais fixos e/ou
móveis (celulares, laptops, notebooks etc.). [Essas definições, por óbvio,
constituem uma simplificação. A grande mídia digitalizada também oferece,
tecnicamente, a possibilidade de interação.]
Compreender em contextos singulares as formas de interação, de
transição entre a grande mídia e a nova mídia é certamente um dos desafios
centrais para quem assume como princípio analítico fundante a relação entre
política e comunicação. É este mesmo princípio que pode permitir compreender
estes macro processos de mudança a partir da interação entre seus
condicionantes institucionais, as posições estruturais de propriedade econômica
e de formas novas de organização e interação social, fugindo a prognósticos impressionistas
que conferem às novas tecnologias o poder unidimensional de moldar futuros.
Filosofia política e regulação do pluralismo conceitual
Uma terceira razão que confere alta complexidade ao desafio de
pensar as relações fundantes entre política e comunicação na Modernidade diz
respeito ao largo dissenso conceitual, à polissemia de sentidos, à
cristalização de linguagens alternativas e, inversamente, ao deslizamento
sincrético de significados que caracteriza o campo de estudos das relações
entre comunicação e política. Esta situação particularmente babélica não diz
respeito apenas à crise de paradigmas das ciências sociais contemporâneas ou
mesmo ao dissenso contemporâneo do estado da arte das teorias democráticas, mas
é próprio de estudos interdisciplinares que combinam códigos discursivos
variados sem o recurso a formas sistemáticas de regulação.
A grande opção teórica e de pesquisa inscrita neste livro é de
convocar a filosofia política, em seu largo pluralismo de tradições, para
regular este dissenso conceitual e para estabelecer campos comuns de sentido.
Os recursos da filosofia política – a sua disposição a abarcar
largas temporalidades e construir conceitos unitários para além da rigidez das
diversas disciplinas que foram separando e especializando o conhecimento das
sociedades, a sua ambição de rigor e, ao mesmo tempo, seu método dialógico, a
sua resistência ao fechamento de sentidos e a sua tradição antidogmática – são
imprescindíveis para se fundar um campo de pensamento que unifique política e
comunicação.
Estes recursos são particularmente decisivos para investigar e
superar o impasse dialógico muito frequente nas democracias ocidentais sobre o
que é liberdade de expressão e como ela deve ser regulada em uma sociedade
democrática. Na verdade, são as diferentes tradições conceituais do que é
liberdade construída pelas linguagens formadoras da Modernidade que esclarecem
os contrastantes discursos públicos em defesa da liberdade de expressão.
Assim, neste livro comparecem pensamentos republicanos, liberais
cívicos, pragmáticos críticos, socialistas democráticos, democráticos
deliberacionistas dispostos a compartilhar, com seus pluralismos, um campo
comum de reflexões e pesquisas.
Uma abordagem praxiológica
E, finalmente, a quarta razão que nutre o princípio organizador
deste livro é reunir reflexões de teoria com a pesquisa sistemática sobre a
história e a contemporaneidade dos desafios vinculados à construção da
liberdade de expressão no Brasil. O diálogo entre este duplo trabalho permitirá
enriquecer mutuamente a construção de conceitos universais e a singularidade da
experiência inacabada de construção republicana do Brasil.
A longa história colonial e a fundação de um Estado nacional
autocrático, assentado na escravidão, na cultura patriarcal e nos privilégios
patrimonialistas, tornou central ao longo de nossa formação a “cultura do
silêncio” ao invés da participação ativa dos cidadãos em uma opinião pública
democrática.
Até relativamente pouco tempo, o Brasil não dispunha de uma mídia de
alcance nacional. Embora a imprensa (jornais e revistas) exista entre nós desde
o século XIX e o cinema e o rádio desde a primeira metade do século XX, por
peculiaridades geográficas e históricas só se pode falar em uma mídia nacional
a partir do surgimento das redes (networks) de televisão, e isto já no
início da década de 1970, portanto, há cerca de 40 anos. O fato de um moderno
sistema de telecomunicações ter se constituído exatamente em período de
ditadura militar e organicamente vinculado a seus interesses políticos e
econômicos só evidencia o quanto o regime de sua propriedade, sua concentração
e sua regulação careceram na origem de um ethos democrático básico.
Esta contradição entre a formação de um sistema de comunicações
moderno consolidado na ditadura e as condições básicas da formação de uma
opinião pública democrática foi transmitida para a contemporaneidade brasileira
sob a forma de um impasse constitucional. Se a Constituição Federal fundamenta
princípios democráticos de relação entre mídia e democracia, tem até agora
prevalecido a resistência, formada pelos interesses empresariais na comunicação
e seus lobbies políticos, a qualquer regulação democrática e pluralista do
setor.
Assim, o impasse dialógico sobre a liberdade de expressão se
expressa na democracia brasileira contemporânea sob a forma de um impasse
constitucional, que condiciona fortemente toda a práxis democrática. Por este
caminho, se a práxis democrática brasileira for incapaz de pensar os
fundamentos da comunicação democrática entre os cidadãos ela está perdendo a
autoconsciência sobre seus impasses fundamentais.
É para este caminho, democrático e pluralista, informado e
dialógico, que este livro busca, nas suas limitações, contribuir.
Referências
LIMA, Venício A. de (2004). “Os ‘Cenários de Representação’ e a
política”. In: RUBIM, A. A. Canelas. (org.). Comunicação e Política:
Conceitos e Abordagens. Salvador/São Paulo: UFBA/UNESP, p. 9-40.
LIMA, Venício A. de (2012). “Cenário de Representação da Política
(CR-P): um conceito e duas hipóteses sobre a relação da mídia com a política” in
idem, Mídia: Teoria e Política. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2ª edição; 2ª. reimpressão; p. 179-216.
***
Juarez Guimarães é professor do
Departamento de Ciência Política da UFMG e co-autor com Ana Paola Amorim
de A Corrupção da Opinião Pública – Uma defesa republicana da liberdade
de expressão, Boitempo, 2013, entre outros livros. Venício A. de Lima é
jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da
UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros
(Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães de Liberdade de
Expressão: as várias faces de um desafio, Paulus, 2013, entre outros livros."
Comentários