“Na dosimetria, fase de definição das
penas, o Supremo adotou um sistema faccioso de deliberação
Paulo Moreira Leite, ISTOÉ
“O céu abriu um pouco, define um assistente
de um dos onze ministros do STF, no final da sessão de ontem.
Ele se referia ao voto de Teori Zavaski, o
ministro que interrompeu o debate para questionar o ponto mais frágil das
condenações produzidas pela Ação Penal 470 – as penas de quem foi condenado por
formação de quadrilha, que atinge vários réus, entre José Dirceu e José
Genoíno.
No percurso labiríntico que as discussões
do STF costumam tomar, vez por outra, a decisão de Zavaski pode vir a ter um
alcance muito maior do que parece.
Zavaski anunciou que mudava seu voto, para
concordar com a minoria que, em deliberações nos dias anteriores, questionou a
condenação por quadrilha.
O ministro não anunciou exatamente o que
irá fazer.
Se, por exemplo, enquadrar Dirceu na pena
mínima, e for acompanhado por outros ministros nessa decisão, o principal
troféu político do julgamento e outros réus poderão deixar o regime fechado e
cumprir pena em semi-aberto.
Não se sabe, ainda, qual o poder real de
influência do voto de Zavaski no STF. Se, a partir dos debates que devem
ocorrer a partir de hoje, ele for seguido por outros dois ministros, haverá uma
maioria a favor da revisão das condenações por formação de quadrilha.
Mesmo que os réus não venham a ser
absolvidos desse crime, o que seria o justo, em minha opinião, teriam a pena
reduzida, o que seria um dano menor.
Mas também pode não acontecer e o voto
revisto de Zavaski se revelar um ponto fora da curva.
Em qualquer caso, o voto de Zavaski trouxe
à luz o impasse de fundo em que se encontrava o debate sobre embargos de
declaração no STF.
Até então, em várias oportunidades,
ministros até admitiam que haviam descoberto um erro em determinadas sentenças.
Mas se
recusavam a fazer a correção necessária em função de um argumento formal, de
que os “embargos de declaração” não eram o momento adequado para tanto.
Com um argumento diverso, o ministro Luiz
Roberto Barroso chegou a dizer que concordava com Ricardo Lewandovski no pedido
de revisão da pena do Bispo Rodrigues mas, recém chegado ao STF, não se
considerava no direito de refazer o julgamento.
O próprio Zavaski assumiu uma conclusão
idêntica, neste e em outros casos, embora empregasse teses diferentes.
O debate de ontem foi iniciado por um voto
do ministro Luiz Roberto Barroso e foi a partir dali que surgiu a novidade que
permitiu a Zavaski reabrir o debate sobre formação de quadrilha.
Barroso propôs a redução a pena de um dos
condenados. Tratando de um cidadão que não desperta as mesmas paixões e até
preconceitos típicos da ação penal 470, pois vem a ser um doleiro do Rio de
Janeiro, ligado ao PP, o mais conservador da frente de aliados do governo Lula,
Barroso apontou para um caso flagrante de injustiça: penas diferentes para
cidadãos condenados por crimes iguais, a partir de responsabilidades idênticas
na mesma empresa.
As ponderações de Barroso ganharam força no
plenário, conquistando a maioria. Assim, pela primeira vez, desde que o debate
sobre embargo de declaração teve início, o STF admitiu e corrigiu um erro.
A intervenção de Zavaski sobre formação de
quadrilha ocorreu nessa situação. Até então, mesmo aceitando as ponderações de
Barros, ele ficou contra a ideia de reduzir penas. Mesmo assim, admitiu que,
quando ocorre um “erro de julgamento,” enfrenta-se uma questão que deve ser
resolvida de uma forma ou de outra. “Ou se beneficiou (um réu). Ou se
prejudicou.”
Ao constatar, contudo, que a maioria havia
assumido outro entendimento, foi além dos colegas e mudou um voto anterior. Considerou
que era possível caminhar em outra direção e aí foi para uma questão mais
relevante, da condenação por formação de quadrilha.
É sintomático que essa discussão tenha sido
provocada, em dois momentos, pelos dois novos integrantes do STF, nomeados depois
que a primeira fase do julgamento havia sido encerrada.
Há um motivo. Eles ficaram de fora de uma
das situações mais estranhas do julgamento da ação penal 470.
Na dosimetria, fase de definição das penas
– que é o debate essencial dos recursos – o STF adotou um sistema faccioso de
deliberação, no ano passado. Decidiu, por maioria, que apenas os juízes que
haviam condenado um réu teriam direito a definir o tamanho de sua pena. Com
isso, ocorreu aquilo que se poderia imaginar.
Ao serem debatidas apenas por ministros
convencidos da culpa de cada acusado, as penas se tornaram artificialmente
altas, sem refletir a visão de conjunto de STF. Para compreender o que
aconteceu, basta imaginar, por hipótese, o caso de um réu condenado por seis votos
a cinco.
Se todos os juízes participam do debate de
sua pena, mesmo aqueles convencidos de sua inocência, sua condenação será
mantida, mas o resultado será seguramente mais equilibrado, mais próximo do que
seria uma opinião do conjunto dos juízes sobre um caso. (Não custa recordar que
o STF é um conjunto único, e não uma soma de indivíduos e suas sentenças. Por
isso os ministros se reúnem e debatem em vez de enviar votos e deliberar pela
internet).
Quando se recorda que o direito de definir
as penas é, no fim das contas, a expressão concreta do Direito e da Justiça, o
ponto final que concentra os direitos dos réus, os deveres dos juízes e, é
claro, os honorários dos advogados, pode-se ter uma ideia da distorção
produzida.
Num debate fechado entre os já convencidos,
ocorre aquilo que se vê num centro acadêmico estudantil, numa assembleia de
acionistas de empresa e, data vênia, num encontro de juízes e suas togas
negras. Temos a opinião de apenas um grupo demarcado, o que favorece uma
deliberação com um viés pré-definido.
Mesmo condenados, os réus enquadrados por
formação de quadrilha tiveram quatro votos contra cinco a favor de sua
inocência. Se esse quadro equilibrado tivesse sido transferido para o debate
sobre penas, os réus teriam mais chances de receberem sentenças que refletiam a
visão do conjunto do STF sobre sua culpa. Quem se recorda dos debates da
dosimetria, dificilmente terá esquecido a impressão de que determinadas penas
foram agravadas não porque fossem as mais adequadas, mas porque se temia que
penas leves pudessem favorecer a prescrição quando se pretendia garantir de
qualquer maneira que os réus fossem para a cadeia.
"Reafirmo que não temos semideuses no
Supremo", disse Marco Aurélio Mello, ao apoiar Luiz Roberto Barroso. Falando
de penas diferentes para crimes identicos, apontou para "uma contradição
que salta aos olhos e que precisa ser corrigida."
Não se sabe até onde irá este debate. O
Supremo enfrenta pressões de outro lado. O ministério público voltou a falar
que irá pedir a prisão dos condenados, como se isso fosse possível sem que o
Supremo revogasse várias etapas na fase final do julgamento, que até hoje fazem
parte da jurisprudência da casa. Estamos falando da publicação dos acórdãos a
respeito dos embargos de declaração, que têm prazo de 60 dias para serem
elaborados, e do direito dos condenados apresentarem um novo embargo de
declaração a partir dos acórdãos. Há, também, o debate sobre embargos
infringentes, onde 12 condenados com quatro votos dissidentes têm o direito –
reconhecido até 2007 por Joaquim Barbosa – de pedir a revisão de seu
julgamento.
É neste debate que será possível descobrir
o que aconteceu ontem.”
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