Luciano Martins Costa, Observatório da Imprensa
“Resolvida, pelo Supremo Tribunal Federal, a questão do recurso chamado
embargo infringente, resta na mídia a discussão sobre os efeitos políticos da
decisão. Especula-se agora se e como a extensão do julgamento, que pode reduzir
as penas de alguns dos condenados, poderá influenciar no resultado da eleição
presidencial de 2014. E mais uma vez, nas páginas dos jornais, as vontades se
sobrepõem à realidade e as opiniões se amontoam sobre os fatos, no festival de
lamentações de articulistas políticos subitamente elevados à condição de
jurisconsultos.
Primeiramente, vamos aos fatos: o voto do ministro Celso de Mello, que
definiu a realização de novas sessões para apreciar recursos de 12 dos 24
condenados, foi considerada por alguns analistas como um modelo de
fundamentação jurídica. Por outros, foi apontado como a porta aberta para a
impunidade.
Compare-se, em integridade e prudência, seu longo arrazoado ao
justificar o voto, com a frase maliciosa e ressentida de outro ministro, Gilmar
Mendes, proferida ao final da sessão de quarta-feira (18/9): “Posso indicar uma
pizzaria para vocês”, disse Mendes a jornalistas.
Essa diferença de comportamento é que delimita os campos entre os quais
balançou a Suprema Corte ao deslizar sobre a lâmina da subjetiva a respeito da
aceitação ou não dos embargos infringentes.
Quem leva o Judiciário a um ponto mais próximo do desrespeito e da
avacalhação? Aquele que se mantém fiel à norma legal, mesmo correndo o risco de
ser criticado pela imprensa, ou aquele que, curvando-se aos editoriais, procura
desmoralizar a instituição referindo-se grosseiramente à hipótese de ter havido
um acerto em favor da impunidade dos réus?
Se houve um divisor de águas, em relação à tradição do Supremo Tribunal
Federal, ao longo do julgamento da Ação Penal 470, ele se define no voto do
ministro Celso de Mello, e não nas etapas anteriores do processo.
É quando o magistrado se desvincula do ambiente externo ao sistema das
leis que se concretiza sua independência, e o voto de Mello explicitamente
declara que os ruídos criados ou amplificados pela imprensa não devem entrar na
composição dos juízos da corte.
Por isso se diz que o fazer Justiça é um ato cumprido na extrema solidão.
Contabilizando sentimentos
Segundamente, vamos às vontades: basicamente, todas as manifestações
contrárias à validade do embargo infringente tinham como argumento central o
suposto “clamor popular”. É em torno dessa ficção que se constroem frases
insidiosas como a do ministro Gilmar Mendes. Acontece que essa é uma expressão
sem significado, uma nulidade no discurso jornalístico, um lugar comum como,
por exemplo, “comoção popular”, banido há décadas das boas redações.
Na suposta objetividade da linguagem jornalística, não cabem esses
jargões, que os profissionais do jornalismo impresso costumavam chamar de
“clichês”. No entanto, é essa manifestação de vontade, que tenta amplificar um
estado de espírito impossível de se comprovar, que fundamenta todos os artigos
que criticam o voto de Celso de Mello.
Observe-se, por exemplo, que na suposta pesquisa de opinião feita pelo
Instituto Datafolha e divulgada na quarta-feira (18), o dado mais consistente
informa que apenas 19% dos paulistanos consultados se consideram razoavelmente
informados sobre o caso chamado de “mensalão”. Onde estaria, portanto, o
“clamor popular” que supostamente deveria ser levado em conta pelo STF e que,
declaradamente, definiu os votos de cinco dos onze ministros?
Ainda que houvesse e que fosse possível
quantificar um suposto sentimento coletivo, explicitado em vozerio
incontestável, em favor do encarceramento imediato dos condenados, o papel da
imprensa deveria ser o de confrontar tal sentimento com o que diz a lei, na
interpretação especializada dos juristas.
São incomuns os casos em que uma opinião massiva pode ser definida
objetivamente na diversidade dos juízos que os acontecimentos produzem na
coletividade. Por exemplo, quando houve o massacre de pelo menos 111
presidiários no antigo complexo do Carandiru, em São Paulo, em outubro de
1992, quase 80% das cartas enviadas à redação do Estado de S. Paulo
defendiam a violência policial. Contra essa onda de irracionalidade, o então
diretor responsável do jornal, Júlio Mesquita Neto, determinou que os
jornalistas mantivessem o noticiário crítico, correndo o risco de perder
centenas, talvez milhares de assinantes.
No caso do chamado “mensalão”, o tal
“clamor popular” é um biombo atrás do qual se escondem cabos eleitorais com
carteirinha de jornalista.’
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