Luciano Martins Costa, Observatório daImprensa
“A leitura de jornais já foi no Brasil, em tempos não muito distantes,
uma das mais gratificantes atividades para os espíritos curiosos. Abrir um
diário era como escancarar uma janela para o mundo. Apesar de encontrar
interpretações da realidade com as quais eventualmente não concordasse, o
leitor ou leitora tinha a convicção de que, mesmo as parcialidades que lhe
impunha a imprensa, buscavam sua legitimação num esforço de objetividade. Assim,
o conservadorismo do Estado de S. Paulo e a ligeireza do Globo
podiam ser comparados à afoiteza impertinente da Folha de S. Paulo e à
austera obsessão do Jornal do Brasil pela acuidade, e podia-se perceber
o valor simbólico de seus conteúdos.
Uma das razões para essa percepção era a presença, nas redações, de
profissionais qualificados com o que existe de essencial no jornalismo: a
humilde curiosidade pelo que há de vir.
Os profissionais não eram avaliados por seu perfil ideológico, mas pela
capacidade de se surpreender e surpreender o leitor. Por isso, as redações eram
verdadeiros laboratórios de receitas políticas, sociais e econômicas, onde um
editor filiado ao Partido Comunista dava instruções a um repórter alinhado a
uma irmandade católica. Ou vice-versa.
O que fazia, por exemplo, o Grupo Folhas, os Diários Associados ou o Shopping
News, semanário de consumo dirigido à classe média alta de São Paulo,
aceitarem como editor o militante trotskista Hermínio Sacchetta, fundador do
Partido Socialista Revolucionário?
Qual era a vantagem de Victor Civita, o criador da Editora Abril, em
manter em seus quadros intelectuais de esquerda visados pela ditadura militar,
ou o que movia Júlio de Mesquita Neto a preservar os comunistas que atuavam no Estado
de S. Paulo e no Jornal da Tarde, muitos dos quais em cargos de
confiança?
A resposta é simples: esses dirigentes de empresas de comunicação sabiam
que o jornalismo só se justifica se a busca da objetividade for um propósito,
não apenas um mote para dissimular a manipulação da notícia. O subcampo
intelectual ocupado pelos jornalistas tinha seus paradigmas, que deviam ser
respeitados pelo patrão. Nesse acordo, a mais-valia dos jornalistas era
compensada pela liberdade de opinião dentro das redações. Em contrapartida, os
jornais ganhavam em diversidade e profundidade, elementos básicos para uma
interpretação multifacetada dos acontecimentos.
Tudo pelos holofotes
Abra agora um jornal, qualquer jornal brasileiro, da quarta-feira, 28 de
agosto de 2013. O leitor vai encontrar, da primeira à última página, uma só
opinião sobre as questões nacionais, seja sobre a crise diplomática criada pela
fuga de um senador boliviano que se abriga no Brasil, seja em torno do programa
Mais Médicos, seja sobre as perspectivas da economia ou nas especulações em
torno das possíveis candidaturas às eleições de 2014.
Todas as pautas conduzem, de alguma forma, a uma matriz de pensamento
cuja principal característica é a substituição da “humilde curiosidade” pelo
dogma que não admite contraste.
A imprensa brasileira faz tão pouco caso do
julgamento que lhe trará o futuro, que parece mesmo movida pela crença na
hipótese do “fim da História”. Não se trata, apenas, do alinhamento automático
com este ou aquele partido ou agrupamento político: a imprensa só é fiel a si
mesma, a seus valores e sua ideologia.
Mesmo os políticos, economistas,
empresários, magistrados e outros protagonistas que contam com o apoio
explícito das redações, aqueles que têm suas opiniões exibidas a qualquer
pretexto, não passam de massa de manobra. Se, no decorrer de determinada
campanha eleitoral, este ou aquele aliado for considerado um obstáculo ao propósito
da mídia tradicional, será descartado liminarmente.
A imprensa é um campo de batalha dentro do
processo civilizatório, e seus soldados são intelectuais cooptados para uma
visão de mundo cada vez mais restritiva. Restam poucas cabeças independentes, e
sua função não é a de assegurar diversidade ao conteúdo jornalístico, mas
preservar a justificativa moral do jornalismo.
Por esse motivo, ao analisar certos textos
de articulistas que se esforçam para manter seu espaço nas colunas de opinião
dos jornais ou em programas de televisão outrora respeitados, eventualmente o
observador se vê tomado por um sentimento de piedade, ao constatar como a
obsessão pelos holofotes pode apagar os últimos resquícios de dignidade
profissional.
Mas a piedade é um sentimento perverso. Não
há inocentes na imprensa.”
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