Os meios de
comunicação não foram eleitos e
manifestam uma
opinião sem consenso na
sociedade / Ilustração:
Minimorgan
|
“Um debate sobre os conceitos de opinião
pública e legitimidade em um país no qual a diversidade de pensamento nunca
prosperou
Parecia uma carta de independência ou um
ultimato antes da declaração de guerra. Na manhã da quarta-feira 18, o jornal
Estado de Minas se arvorava no papel de representante legítimo dos 19 milhões
de habitantes do estado. Em editorial de primeira página, o jornal investia
contra o ministro Celso de Mello, que dali a horas decidiria o futuro de 11
condenados no processo do “mensalão”. “Nas ruas de Belo Horizonte, parte
expressiva da população tende a considerar a aceitação dos embargos como
decepcionante. Pior: um aceno à impunidade”, afirmava o texto. No dia seguinte,
como tantos veículos de comunicação, o diário mineiro não esconderia a
insatisfação com a “prorrogação” da análise do processo. O carioca O Globo iria
além. “STF mantém a impunidade de mensaleiros até 2014”, cravou na capa. Em tom
uníssono, a mídia lamentou o “divórcio” entre o Supremo Tribunal Federal e a
“opinião pública”.
Mas qual opinião pública? “A do próprio
jornal, oras”, avalia, sem rodeios, o sociólogo Venício de Lima, professor da
UnB e dedicado aos estudos da mídia. “Desde meados do século passado, os
principais grupos de mídia reivindicam a representação da opinião pública em
detrimento dos canais institucionais da democracia representativa, como
partidos, governos e Congresso. Isso porque a imprensa tem o papel de mediar a
comunicação, fazer a ponte entre o público e as instâncias de debate político.”
Com um problema, ressalta: “Ao mesmo tempo que fazem essa mediação, esses
grupos são atores políticos, defensores de seus próprios interesses e dos de
seus financiadores. Em nenhum lugar do mundo a mídia pode se colocar como
porta-voz da opinião pública. Menos ainda no Brasil, marcado pela forte
concentração dos meios de comunicação, um oligopólio de interesses muito
particulares”.
A avaliação de Lima é compartilhada pela cientista política Vera Chaia, professora da PUC-SP. “A mídia não foi eleita, não tem representatividade, não pode falar em nome do conjunto da população. O que pode medir a opinião pública são as pesquisas, e mesmo assim é preciso olhar para elas com certa desconfiança, pois normalmente direcionam o entrevistado a se manifestar sobre as pautas predeterminadas pela mídia”, avalia a docente. “Ainda mais descabido é pressionar um juiz a decidir conforme o clamor popular. Um ministro da Suprema Corte tem de julgar com base na Constituição, na defesa do ordenamento jurídico.”
A avaliação de Lima é compartilhada pela cientista política Vera Chaia, professora da PUC-SP. “A mídia não foi eleita, não tem representatividade, não pode falar em nome do conjunto da população. O que pode medir a opinião pública são as pesquisas, e mesmo assim é preciso olhar para elas com certa desconfiança, pois normalmente direcionam o entrevistado a se manifestar sobre as pautas predeterminadas pela mídia”, avalia a docente. “Ainda mais descabido é pressionar um juiz a decidir conforme o clamor popular. Um ministro da Suprema Corte tem de julgar com base na Constituição, na defesa do ordenamento jurídico.”
Marcus Figueiredo, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, ressalta que o conceito de “opinião pública” está no singular não por acaso. “Ela só se manifesta quando há consenso na sociedade. É do interesse do conjunto da população, por exemplo, ter um sistema de transporte público bom e confiável. Não interessa se boa parte da população tem automóvel particular. A mobilidade urbana depende de sistemas de transporte coletivo”, afirma. “Portanto, podemos dizer que a opinião pública é favorável ao combate à corrupção, mas daí a dizer que é contra os embargos dos réus do ‘mensalão’ são outros quinhentos. O que estava em jogo ali não era esse único processo, e sim a validade de um recurso jurídico. Até porque, amanhã ou depois, o dono desse jornal que fala em nome da opinião pública pode estar no banco dos réus e sentir que o seu direito à ampla defesa foi cerceado pelo STF lá atrás.”
Para tentar assumir o posto de legítima
representante da opinião pública, a mídia costuma desqualificar as demais
instâncias políticas da democracia, sustenta o historiador Aloysio Castelo de
Carvalho, professor da UFF. “Os jornais se apresentam como uma voz mais
autêntica por não ter envolvimento direto no processo eleitoral, e exploram o
desgaste que existe entre os políticos eleitos e a população representada. Em
países com democracia mais consolidada, há um equilíbrio maior nessa relação
entre a mídia e as instituições políticas. Uma responde à outra, sobretudo nos
casos de desvio de conduta. Aqui, não. Além disso, não há uma tradição de
pluralidade de pensamento na mídia brasileira. Boa parte da população tem a sua
voz ignorada pelos jornais.”
Autor de um livro sobre o tema, Carvalho cita o exemplo da articulação de dezenas de emissoras de rádio, dos Diários Associados e dos jornais cariocas O Globo e Jornal do Brasil pela deposição do presidente João Goulart. Criada em 1963, a cinicamente autointitulada “Rede da Democracia” se colocava como porta-voz da opinião pública e exigia a intervenção dos militares contra a suposta ameaça comunista no País. “Praticamente, não havia oposição nos meios de comunicação a esse projeto, que resultou no golpe de 1964 e em uma ditadura de 21 anos.”
O alardeado “divórcio” entre o Judiciário e a opinião pública é outra invenção, sustenta Fernando Filgueiras, professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Referência do Interesse Público. “Nunca existiu esse casamento, até porque a população nutre profunda desconfiança em relação ao Judiciário.” Em artigo publicado na revista acadêmica Brazilian Political Science Review, ele apresenta uma pesquisa feita em 2012 com mais de 1,2 mil entrevistados em Belo Horizonte, Goiânia, Porto Alegre e Recife. A desconfiança atinge todas as instituições: Presidência da República, Congresso Nacional, forças policiais... Mas também o Judiciário, visto com suspeição por 48,7%. As razões são claras: 61,4% não acreditam que os cidadãos são tratados de forma igual, e 51,7% avaliam que os juízes tomam decisões influenciadas por políticos, empresários e outros interesses.”
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