Independente. A
busca incessante
e corajosa da
verdade factual
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Certo dia alguém
perguntou a Hannah Arendt, a pensadora judia, se gostava do seu povo. “Não –
respondeu –, gosto é dos meus amigos judeus.” Tratava-se de uma cidadã muito
corajosa, pela ousadia de conduzir sua inteligência pelos caminhos da
independência.
O pensamento de Hannah Arendt sempre me atraiu e foi
dela que furtei a expressão “verdade factual”, cuja busca é fundamento do
jornalismo. Nem bom, nem mau, jornalismo, e ponto. Digo, aquele que a mídia
nativa não costuma praticar.
Entra em cartaz um filme de Margarethe von Trotta, a
cineasta alemã, intitulado Hannah Arendt. E lá vou eu, devidamente
imantado. Conta um largo e decisivo episódio da vida da escritora. O serviço
secreto israelense invade a Argentina e sequestra o criminoso nazista Adolf
Eichmann, que para lá fugiu logo após a guerra.
Hannah é convidada pela New Yorker a acompanhar
o julgamento do criminoso, que Israel instaura em Jerusalém, e a escrever a
respeito. Penas iluminadas saíram-se bem em ocasiões similares. Por exemplo,
John dos Passos quando da morte de Rodolfo Valentino. A profundidade das
observações enriquece a reportagem, mas não tentem explicar o conceito aos
editores dos nossos jornalões e revistões.
A escritora aceita a tarefa insólita, e viaja a
Jerusalém, onde a esperam velhos e queridos amigos. Von Trotta insere na sua
filmagem trechos do documentário realizado durante o processo, e sabe
escolhê-los, de sorte a expor a personalidade do réu a bem da fluência do
enredo.
Passa-se um tempo antes que Hannah, de volta a Nova
York, onde vive e leciona, passe à escrita. Uma demorada reflexão obriga-a a um
penoso exercício de espeleologia interior, à caça do verdadeiro rosto de
Eichmann. Quem é ele? Um homem que não pensa, conclui a filósofa-repórter, algo
assim como um autômato. E esta é verdade factual.
Burocrata zeloso, Eichmann incumbe-se da inexorável
pontualidade dos trens que carregam dezenas de milhares de judeus para os
fornos crematórios, assim como faria se em lugar de seres humanos houvesse
gado, ou cães raivosos. Ele executa ordens sem inquirir a sua consciência a
respeito de coisa alguma, com obediência robótica à vontade do Führer. Desta
investigação alma adentro de um criminoso exemplar nasceria uma das obras mais
notáveis de Hannah Arendt, A Banalidade do Mal.
A nação judia entendeu que uma das suas cabeças privilegiadas
defendia Eichmann, e mesmo os amigos mais queridos, e os diretores da
universidade onde lecionava, a condenaram sem recurso. Eles também não
pensavam. Outro filósofo disse “penso, logo existo”. No entanto, que
significa pensar? Tudo se reduziria apenas e tão somente à consciência da
existência? Donde, à percepção do efêmero, colhida pelo ser pré-histórico,
talvez em meio a uma clareira remota iluminada pela lua, ao erguer os olhos e
se inteirar pela primeira vez do céu estrelado.
Hannah apontou também as
responsabilidades das lideranças judias, que, entre outras coisas, não haviam
hesitado em violar as fronteiras argentinas e em evitar um processo
internacional como a Justiça recomendava. Com isso, piorou muito a sua situação
aos olhos judeus. Impecável, de verdadeiro jornalista, foi o comportamento do
diretor da New Yorker. Até seus colaboradores mais próximos se
empenharam para impedir a publicação dos textos da “enviada especial”. Ele foi
até o fim e os estampou sem arrependimentos.
O homem é um bicho imperfeito, muito imperfeito, a
gente sabe. Dispõe dos instrumentos para pensar, mas a maioria não sabe
usá-los. A maioria felizmente não é de criminosos nazistas, mas é incapaz de
fugas do clichê, do chavão, do lugar-comum, da frase feita. Deste ponto de
vista, a sociedade emergente do Brasil é imbatível, ipsis litteris
repete incansável as passagens mais candentes dos textos de jornalões e
revistões enquanto os jornalistas aderem automaticamente às crenças dos seus
patrões. Na terra da casa-grande e da senzala, a maioria vive ainda no limbo e
os senhores jogam ao lixo o patrimônio Brasil. O mundo atravessa dias
decadentes, é inegável. O País, contudo, bate recordes nestas areias movediças.”
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