“O esquema de autoproteção só foi
vencido por uma multinacional alemã, a Siemens, que tomou a decisão de pedir um
acordo de leniência
Paulo Moreira Leite, ISTOÉ
Ainda é cedo para procurar equivalências
entre o esquema financeiro que deu origem ao mensalão petista e o esquema que
está por trás dos negócios sombrios que envolvem duas décadas de gestão tucana em São Paulo.
O que já se pode assegurar é que em matéria
de autoproteção o esquema tucano mostrou-se muito mais eficiente.
A blindagem tucana era tão bem sucedida que
só foi vencida por uma multinacional alemã, a Siemens, que tomou a decisão de
pedir um acordo de leniência junto às autoridades brasileiras, confessando duas
décadas de práticas condenáveis, apresentando nomes, cargos e endereços.
Foi essa iniciativa, que envolve uma das
maiores empresas do mundo, que mudou a história.
As primeiras denuncias sobre o propinoduto
tucano remetem a 1998 e, como se vê, jamais foram apuradas nem investigadas
como se deveria. Adormeceram em inquéritos que não esclareceram todas as provas
e indícios. A imprensa nunca mostrou o mesmo apetite para explicar o que
acontecia.
Se há algo realmente novo a ser apurado
hoje consiste em perguntar por que havia tantos indícios e pouco se investigou,
ao contrário do que se fez no mensalão petista.
Num país que hoje debate até erros e
possíveis abusos ocorridos no julgamento do mensalão, que traiam a vontade de
punir os acusados de qualquer maneira, ninguém irá acusar o procurador Antônio
Carlos Fernandes, nem seu sucessor Roberto Gurgel nem o relator Joaquim Barbosa
de fazer corpo mole, certo?
A recíproca não é verdadeira.
Mesmo reportagens pioneiras sobre o
propinoduto, como a de Gilberto Nascimento, que em 2009 mostrou tanta coisa que
hoje deixa tanta gente boquiaberta em relação ao PSDB paulista, não causaram
ruído nem preocupação. Neste período, denuncias parciais sobre o caso entravam
e saíam dos jornais, de forma esporádica e superficial.
A situação se modificou quando ISTOÉ
permaneceu duas semanas consecutivas nas bancas, com duas capas dedicadas ao
assunto. As reportagens de Alan Rodrigues, Pedro Marcondes de Moura e Sergio
Pardellas trouxeram revelações importantíssimas e consolidadas sobre as
entranhas do cartel de empresas que administrava o esquema.
ISTOÉ faz muito bem em lembrar, na
edição que acaba de chega às bancas, a existência de dezenas de
inquéritos e investigações iniciadas e encerradas sem maiores consequências. A
revista mostra que ninguém pode alegar que não sabia de nada.
O dado político é simples. Se o
mensalão petista tivesse sido apurado e investigado no mesmo ritmo do
propinoduto tucano, que levou quinze anos para ganhar a estatura atual, apenas
em 2020 teríamos uma CPI para ouvir as denúncias de Roberto Jefferson. Em vez
de ser retirado à força da Casa Civil, José Dirceu quem sabe tivesse sido
promovido a candidato presidencial, em 2010, e em 2013, como sonhavam tantos
petistas, pudesse estar sentado na cadeira de Dilma Rousseff. Ou talvez Lula
tivesse escolhido Antonio Palocci como sucessor.
Em qualquer caso, a palavra mensalão ainda
não faria parte do vocabulário dos brasileiros. Joaquim Barbosa até poderia ter
virado ministro do Supremo – afinal, desde a posse Lula queria colocar um
ministro negro no STF – mas dificilmente teria acumulado tanta
popularidade em função de um julgamento que talvez só fosse ocorrer, quem sabe,
em 2027.
Seguindo nessa pequena ficção científica,
também seria curioso perguntar quais, entre os líderes do PSDB, quais teriam
sido levados ao banco dos réus.
Teriam direito a um julgamento isento ou
teríamos aplicado a teoria do domínio do fato? Ou, a exemplo do mensalão
PSDB-MG, teriam sido todos levados a um tribunal de primeira instância? Os
juízes se divertiriam fazendo piadinhas sobre os tucanos e seus discursos
éticos?
Basta colocar rostos e nomes nos dois
escândalos para compreender que nunca teriam o mesmo desfecho, certo?
Até agora, nem a Assembléia Legislativa nem
o Congresso conseguiram assinaturas para abrir uma CPI. É um recorde, quando se
lembra que, entre 2005 e 2006, funcionavam três CPIs para tratar do mensalão.
O governador Geraldo Alckmin decidiu montar
uma comissão para acompanhar as investigações. Imagine se Lula tivesse feito a
mesma coisa, em 2005. No mínimo teria sido acusado de usar o “aparelho petista”
para influenciar os trabalhos do Congresso e da Justiça, certo?
A semelhança entre os escândalos não se
encontra nos personagens, nem em seus compromissos políticos.
A semelhança reside no caráter do Estado
brasileiro, na sua fraqueza para se proteger de interesses privados que
procuram alugar e controlar o poder político.
É um drama que está na origem do mensalão
petista e ajuda a entender a prolongada e impune existência do propinoduto
tucano.
Depois de ensinar que a história ocorre uma
vez como tragédia e uma segunda, como farsa, Karl Marx nos lembrou que os
homens não atuam sob condições ideais, que aprendem nos livros de boas maneiras
nem nos cursos de civismo, mas atuam sob condições dadas, que herdaram de seus
antepassados.
O discurso moralista gosta de atribuir a
corrupção à falta de escrúpulos de nossos políticos, o que é uma visão ingênua
e perigosa.
Não há dúvida de que pessoas inescrupulosas
podem enriquecer com o dinheiro dos esquemas políticos. (Também há pessoas
inescrupulosas que enriquecem na iniciativa privada, na próxima esquina, no
primeiro botequim e até em aniversário de criança, vamos combinar).
Mas o dinheiro dos partidos, que circulou
nos dois casos, é fruto da natureza distorcida e abrutalhada de nosso regime
político, onde a democracia foi acompanhada por uma libertinagem de alta
tolerância nas regras financeiras, sob medida para que o Estado pudesse ser
capturado e alugado pelas potencias privadas.
Numa sociologia rápida, pode-se dizer que,
com o fim da ditadura militar, a turma do alto da pirâmide passou a
utilizar o sistema privado de financiamento de campanha como um contrapeso para
enfrentar demandas populares.
Num regime democrático, a questão social
não pode ser um caso de cadeira de dragão no DOI-CODI, não é mesmo? Tenta-se,
então, amaciar o pessoal de cima.
É por isso, e não por outra coisa, que
sempre se tratou com palavras de horror fingido todo esforço para regulamentar
verbas de campanha e mesmo para impedir que eleitores de R$ 1 bilhão de votos
pudessem se impor sobre um regime que, no papel, prevê a regra de que l homem =
1 voto.
Neste aspecto, as confissões dos executivos
da Siemens contém ensinamentos úteis a todos.
Um dos mais preciosos é o diário de um
gerente, que detalha as negociações para a construção da linha 5 do metrô
paulista. Fica claro, ali, que as empresas privadas são senhoras da situação. Negociam
acordos, partilham obras, serviços e, é claro, verbas. Interessado no metrô,
uma obra mais do que necessária, tanto para a população como para seus planos
políticos, o governo – o titular, na época, era Mário Covas – está reduzido a
impotência absoluta.
Não tem força política para impor aquilo
que a lei manda, que é a concorrência impessoal e absoluta entre as partes. Não
lhe passa pela cabeça denunciar suas práticas à Justiça.
Em tempos de privatização acelerada,
novidade que o PSDB ajudava a trazer ao país na época, junto com controles de
gastos que proibiam qualquer gasto maior, não se cogita a possibilidade
de entregar um investimento tão grandioso ao Estado.
Nessa situação o governo é forçado a ceder
ao cartel de falsos concorrentes e adversários de araque, sob o risco de
enfrentar ações judiciais, protestos e investigações que irão paralisar os
investimentos.
É assim que o governador, chamado de
“cliente” no diário, manda dizer que quer que “eles se entendam”. O “cliente”
também avisa que após o acordo entre os concorrentes, irá recusar reclamações e
queixas futuras.
Num artigo sobre o caso, a colunista Maria
Cristina Fernandes, do Valor, recorda que, com o passar dos anos, os governos
petistas também fizeram a mesma coisa, instalando no ministério dos Transportes
– armazém de gastos de vulto -- partidos com “notória especialização nos
contratos da política.”
Essa situação cinzenta tem uma finalidade. Quer-se
impedir o surgimento de novos entraves a investimentos necessários ao
país.
Bobagem querer enxergar o que se passa nos
bastidores com olhares simplórios do simples moralismo.
O país necessita de investimentos para
criar empregos e se desenvolver. As obras de infraestrutura, como metrô, se
destinam a superar uma omissão histórica. A questão é política e envolve a
definição de regras que permitam a democracia brasileira recuperar sua
soberania, mantendo o dinheiro dos interesses privados longe da política e dos
políticos. Seu lugar é a economia e não o Estado.
Nós sabemos que a necessidade de uma
reforma política é apoiada por 85% dos brasileiros. Ela pode proibir o uso de
dinheiro privado no financiamento político, cortando o laço material que se
encontra na origem de tudo. Um escândalo desse tamanho pode ser de grande
utilidade neste debate.
Quem dizia que o debate sobre reforma
eleitoral era desculpa do adversário tem a oportunidade de assumir uma
postura honesta e encarar a discussão. Não se trata de uma guerra de
propineiros x mensaleiros mas de um esforço para emancipar a democracia de
outros interesses além da soberania popular.”
Comentários