Belluzzo: Brasil precisa superar enganos conjunturais e fazer política macroeconômica


O economista Luiz Gonzaga Belluzzo avalia que a presidente Dilma Rousseff tem uma visão clara do que deseja para o país a longo prazo, mas terá de enfrentar fortes obstáculos para concretizar um projeto de futuro. Um deles é a dificuldade dos agentes econômicos de privilegiar as decisões conjunturais às de caráter macroeconômico. Por Maria Inês Nassif

Maria Inês Nassif, Carta Maior

O Brasil saiu-se “muito bem” da crise financeira mundial de 2008, mas ainda tem que enfrentar sérios problemas, como “a relação perversa entre juros e câmbio”, a saída do país de sua estrutura de fornecimento e a precariedade de sua infraestrutura. É o que pensa o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, para quem a presidente Dilma Rousseff tem uma visão clara do que deseja para o país a longo prazo, mas terá de enfrentar fortes obstáculos para concretizar um projeto de futuro. Um deles é a dificuldade dos agentes econômicos de privilegiar as decisões conjunturais às de caráter macroeconômico.

Um engano dessa visão conjuntural, por exemplo, é tomar a desindustrialização do país como uma transição para uma “economia de serviços”. “Isto é uma fuga da realidade”, adverte o professor. Estados Unidos e Europa, que viveram desse engano nas últimas décadas, hoje se empenham em se reindustrializar, tentando levar, de volta, as empresas que saíram de seus países para o mundo, atrás de maiores vantagens para produção.

O Brasil precisa não apenas retomar sua industrialização, mas fazer sua reintegração produtiva no mundo, diz Belluzzo. Nessa reacomodação interna e externa, deve inclusive rever questões como o protecionismo. Não é nada fora de propósito, por exemplo, a presidente querer exigir das empresas que vão explorar o Pré-Sal um alto grau de conteúdo nacional.

Os planos para o futuro, todavia, não podem prescindir de uma atenção especial à educação – não propriamente a educação técnica, mas a educação humanista, aquela que dê elementos para o cidadão entender e julgar. “É preciso formar cidadãos, para que não se forme o especialista idiotizado”, diz.

Belluzzo considera importante a consolidação de uma cultura democrática de debate em espaços de “controvérsia e discussão”, a exemplo do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – e para que eles funcionem, o fundamental é a diversidade de formação e de pontos de vista.

Leia, abaixo, os principais pontos da entrevista de Luiz Gonzaga Belluzzo à Carta Maior.

Espaços de mediação
Para Belluzzo, a democracia não pode se resumir exclusivamente ao voto. Os espaços de controvérsia e discussão fazem parte do processo democrático. “A cidadania é o exercício permanente de participação”, afirma. No Brasil, todavia, instâncias intermediárias, destinadas a aproximar o escolhido pelo voto e o cidadão, não são levadas muito em conta. “Essas práticas foram construídas pelos governos do PT e num período ainda mais recente nos descuramos um pouquinho da importância dessas práticas”, afirmou o economista. Exemplos positivos dessas práticas são o Orçamento Participativo e os conselhos.

“Os conselhos têm representação do todo, portanto são fundamentais para a construção da vida democrática”, diz Belluzzo. E são particularmente importantes num Estado que ganha complexidade, e onde a burocracia tende a se autonomizar.

Para que o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) funcione, o fundamental é a “diversidade de pontos de vista e de formação”, opina.

Papel de coordenação do Estado
“A tentativa de separar o Estado e o mercado é uma dicotomia falsa”, afirma Belluzzo. “Como dizia Fernand Braudel, não há capitalismo sem Estado.” E a agenda do Estado, segundo ele, tem de ser a de coordenar um mercado que não tem tendência a gerar bons resultados do ponto de vista da equidade; não tem tendência à estabilidade; nem permite projetar uma economia de longo prazo. O Estado deve restabelecer suas três funções: de “corretor de desigualdades”; de “evitar o excesso de instabilidade econômica”; e de planejar a longo prazo.

Reformas estruturantes
Desde o governo Lula, Belluzzo, Delfim Netto e o ministro Guido Mantega se reúnem regularmente para debater a economia – antes com Lula, agora com a presidente Dilma Rousseff. Desde então, as preocupações se concentram em três questões, segundo Belluzzo: “a relação perversa que o Brasil tinha entre a taxa de juros e o câmbio, com câmbio muito valorizado e taxas de juros muito altas”; em decorrência, a saída da “estrutura de fornecimento” do país (o fornecimento interno passa a ser feito pelo exterior), que tem um efeito inflacionário potencialmente grave, se ocorre a desvalorização cambial; e uma infraestrutura atrasada que onera muito fortemente a exportação do país.

Para Belluzzo, o Brasil se comportou “razoavelmente bem” no pós-crise de 2008 – “aliás, acho que muito bem”, retifica – e a presidente Dilma tem feito um grande esforço para quebrar essa “relação perversa” entre juros e câmbio, que é um “convite para que as empresas tomem empréstimos em moeda estrangeira”. “Nós já assistimos esse filme várias vezes, provavelmente desta vez não vamos sofrer tanto, porque temos US$ 375 bilhões de reservas”, ressalva. De qualquer forma, é uma equação que traz um alto grau de instabilidade.

A infraestrutura brasileira estagnou na década de 70, na crise da dívida externa brasileira, e hoje exibe enormes gargalos. É um enorme ônus para as exportações brasileiras, afirma o economista.

A presidente Dilma “tem clara a questão de longo prazo”, diz Belluzzo, mas enfrenta uma série de dificuldades, inclusive a de governar em um momento em que a conjuntura “tapeia”, ou seja, obscurece, a questão mais importante, que é macroeconômica. Um dos enganos colocados pela conjuntura, exemplificados por Belluzzo, é a falsa ideia de que a economia brasileira vai se tornar uma economia de serviços. “Esta é uma fuga da realidade”, afirma. “Os americanos e os europeus, neste momento, estão desesperados para se reindustrializar”.

“Durante 30 anos marcamos passo na questão da industrialização”, afirmou. Nessas décadas, a indústria mundial mudou completamente e hoje está concentrada na Ásia e na China. As cadeias produtivas foram internacionalizadas. “E o Brasil ficou à margem do processo de internacionalização produtiva”, afirma.

Para Belluzzo, a reintegração produtiva do país recoloca, neste momento, a questão do protecionismo. Dilma defende, por exemplo, que a exploração do petróleo na camada de Pré-Sal seja condicionada a uma forte demanda de conteúdo nacional. “Aí os conservadores dizem: não, isso é coisa atrasada. Não é atrasada: eles que são atrasados, pois na verdade, para manter e desenvolver e até atrair o capital estrangeiro (...) você precisa desse tipo de política”, afirma. E o fato é que, desde os anos 70, o Brasil vive um declínio sistemático da indústria.

A questão a ser resolvida num processo de desenvolvimento, para Belluzzo, é a educação – não necessariamente a educação técnica, mas fundamentalmente a educação cidadã. “É preciso a formação de cidadãos, para que não se forme o especialista idiotizado”, diz. “Você não pode ter um país desenvolvido sem ter um cidadão capaz de compreender”.

“O meu maior medo”, diz Belluzzo, “é que o Brasil vire um país rico, próspero, mas com uma população insuficientemente formada e com baixo nível cultural”. Isto, segundo ele, não é defender uma ilustração das pessoas, mas “a capacidade de compreensão e de julgamento”.

Estado de Bem-Estar foi derrotado
“O neoliberalismo não é um produto de [Ronald] Reagan ou [Margareth] Thatcher, é produto da derrota da luta social. Foi essa derrota que permitiu a ascensão de Reagan e de Thatcher”, afirma o professor. Ele afirma que, em no final dos anos 60, meados dos anos 70, “começou a haver um certo incômodo (...) com o poder dos sindicatos, com a interferência do Estado, ou seja, as classes dominantes e dirigentes começaram a se sentir incomodados dentro do espartilho que o Estado lhes colocava, com o poder do sindicato de reivindicar etc.”

A primeira coisa que Reagan e Thatcher fizeram, o pontapé inicial para a retomada do liberalismo, foi derrotar os sindicatos. “Esse foi o fator fundamental e aí começaram as liberações, começaram a flexibilizar o mercado de trabalho, fizeram a liberação financeira etc.”

Pior que 1929
A crise de 2008 repôs um problema tratado há 70 anos: a coordenação do sistema monetário internacional. Descortinou um sistema onde a coordenação torna-se impossível, na medida em que os Estados Unidos, país gestor da moeda de reserva, não assume responsabilidades globais e os países que não têm moeda conversível pagam pelo choque de qualquer mudança na política econômica norte-americana.

“Não é possível que os Estados Unidos, que são os gestores da moeda de reserva e, portanto, têm responsabilidades globais, tomem decisões em função de seus interesses que desorganizam a economia de todo o mundo”, diz Belluzzo. “Você não faz nada de errado, mas você leva o choque de qualquer mudança na política americana”.

Para o economista, a crise atual remete à mesma discussão sobre o sistema monetário que se repete há 70 anos, sem que nada importante tenha efetivamente acontecido. Como as instituições multilaterais não cumprem o papel regulador, “cada um toma a atitude que acha conveniente”. “Não aconteceu nada em relação aos desequilíbrios internacionais, nem à questão da regulamentação ou do controle do sistema financeiro”, conclui.

A grande crise do Século XXI também traz como desvantagem o fato de não ter produzido nada de novo, ao contrário da crise de 1929, que resultou em reformas importantes. “Os governos [apenas] protegeram seus sistemas bancários, impediram o que seria catastrófico, uma brutal desvalorização (...), mas não fizeram mais nada. Deixaram tudo como está.”

Uma religião chamada economia
“A economia é uma forma de conhecimento que, hoje em dia, se aproxima muito da religião, porque transformou certas coisas em dogmas”, afirma Belluzzo. E esses dogmas dominam as cabeças da maioria dos economistas formados nas melhores escolas americanas e europeias. O domínio ideológico da escola econômica neoliberal tem o poder de impedir grandes mudanças, segundo o professor. “Hoje se pode fazer pouca coisa para avançar, mas não se pode vencer o que está encastelado nas finanças e nas universidades que servem às finanças”, diz Belluzzo.

Essa predominância constitui um verdadeiro “bloqueio ideológico” que, somado a debilidades do Estado atual de fazer mudanças, produzem uma grande dificuldade de governos de fazer política.

“Você não tem mais um Estado capaz de fazer política”, diz Belluzzo. “O Estado americano, por exemplo, não passa de um comitê de empresas”, afirma. A exceção fica por conta do Estado chinês: “Ali se pode ganhar dinheiro à vontade, só que nas políticas de longo prazo do governo chinês ninguém mexe”.

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