Como São
Francisco, Bergoglio
mira no futuro /
AFP
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“João Paulo II também veio ao Brasil, mas
papa Francisco toma rumo oposto àquele de Wojtyla
“Há quem diga, com alguma ironia, que o argentino
é um italiano que fala espanhol e pensa ser inglês. Deve-se a definição ao fato
de que são muitos os argentinos de origem peninsular. O papa Bergoglio é filho
de italianos, mas certamente não se imagina inglês.
Quando Francisco foi eleito, não fui solitário ao
supor que a escolha de um pontífice sul-americano pudesse indicar a especial
preocupação do Vaticano em relação a um subcontinente progressivamente
governado por forças esquerdistas, ou tidas como tais. Bergoglio está a revelar
outra especial preocupação, especialíssima, a da Igreja Católica em relação a
si mesma.
Trata-se, transparentemente, de retomar um caminho
abandonado em função de uma ação muito mais política, e de política
contingente, do que pastoral. Entendam bem, por favor: sempre me revoltaram
certos editoriais dos nossos jornalões que, em tempos ditatoriais, pretendiam
calar resistentes do porte de Paulo Evaristo Arns, e de muitos altos prelados
brasileiros, inconformados com os desmandos do regime. Da mesma forma, sempre
deplorei a igreja que prega a resignação de quem transita pelo vale de
lágrimas.
São óbvias, de todo modo, as demandas políticas da
chamada opção preferencial pelos pobres, obstadas agressivamente pela
casa-grande. E logo me ocorre recordar a visita de João Paulo II ao Brasil de
1979. Wojtyla só pensou e fez política, com a dimensão de pontífice medieval,
imponente na determinação autoritária e, fosse o caso, na hipocrisia. Na
traição à palavra de Cristo, em proveito de um desenho hegemônico que passava
pela derrota final do socialismo real. Feroz, inclusive, no propósito
bem-sucedido de acabar de vez com a resistência de batina à ditadura
brasileira.
Há quem vislumbre alguma semelhança entre Francisco e
João XXIII. Não tenho sabedoria para dissertar no tema. É certo, porém, que os
editoriais dos jornalões, não somente os nativos, viam em Roncalli, o campônio
de Bergamo, um pontífice perigosamente inclinado à esquerda. Há uma curiosa
diferença entre João XXIII e João Paulo II, diz respeito a padre Pio di
Pietrelcina, venerado como taumaturgo. Wojtyla canonizou Pio em 1999 e o
santificou em 2002, enquanto Roncalli, quatro décadas antes, desconfiava do
futuro santo, a ponto de determinar uma investigação sobre seus pretensos
milagres. Apurou-se que Pio era um embusteiro, capaz de abusar das paroquianas
e de provocar em si próprio falsas estigmatas, mãos e pés perfurados pelos
cravos da cruz de Cristo, pelo uso de ácidos adquiridos na farmácia.
Têmperas e propósitos opostos. Talvez João Paulo I
representasse um risco notável para a igreja pretendida pela Cúria Romana ao
ser eleito. Morreu um mês depois, em meio ao sono, de forma misteriosa e, em
todo caso, muito mal explicada. Sabe-se que ao deitar tomara uma chávena de chá
depois de ler apontamentos sobre as atividades de monsenhor Marcinkus,
“banqueiro de Deus” na qualidade de boss do IOR, o Instituto para as
Obras da Religião, aprazível recanto financeiro instalado em pleno Vaticano,
disposto a dar guarida a dinheiro mafioso. Lavanderia sacra que Bergoglio não
aceita e não quer.
Marcinkus, americano de vigoroso aspecto,
jogador de tênis e amigo de senhoras esguias, veio ao Brasil em 1979 à testa da
comitiva papal e teve papel destacado ao longo da visita. Muitos anos depois,
aos 84, morreu como bispo de uma diocese insignificante no interior dos EUA. João
Paulo II abandonou-o ao seu destino. Creio que Marcinkus não apreciaria as
palavras de Francisco, pronunciadas na quarta-feira passada 24 em Aparecida: “É
verdade que hoje mais ou menos todas as pessoas, e também os nossos jovens,
experimentam o fascínio de tantos ídolos que se colocam no lugar de Deus e
parecem dar esperança: o dinheiro, o poder, o sucesso, o prazer”. Francisco
traça o perfil de uma humanidade desesperançada. Recomenda, no entanto, o
retorno a valores esquecidos, tais como solidariedade, fraternidade,
generosidade, sem descurar da alegria.
A presidenta Dilma cuidou de expor, no
discurso de acolhida, a sua interpretação das recentes manifestações de rua,
que no Rio, aliás, ainda se repetem. É possível que temesse um discurso
político do papa, para condenar a desigualdade social. Mas, até quinta 25,
Francisco roçou indiretamente a política, nada além disso, e a partir de um
enfoque universal, a esclarecer o exemplo buscado do santo poverello d’Assisi,
pobrezinho de Assis.
Há situações medievais neste enredo, mas se
João Paulo II reeditou o passado, Francisco, o santo, foi de alguma maneira o
futuro, como, a seu modo, precursor de Wyclif, de Huss, de Lutero. Desta visita
papal emergem duas certezas, sem detrimento de melhores considerações. Primeiro,
Bergoglio toma rumo contrário àquele de Wojtyla. Mostra com toda a nitidez
estar interessado na restauração da fé em lugar de uma vitória política do
momento, no caso a do capitalismo, entendido como o Bem contra o Mal vermelho. Sem
esquecer que o empenho a favor dos pobres é a própria busca da igualdade.
A segunda certeza é mais comezinha, de
certa forma mais banal: o Brasil, na perspectiva da Copa do Mundo, prova não
estar maduro, nos dias de hoje, para ser cenário de eventos grandiosos. Por
exemplo, vimos Francisco vítima de congestionamentos de trânsito e desarranjos
do metrô que imaginávamos reservados exclusivamente a mortais comuns.”
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