Sylvia Debossan Moretzsohn, Observatório daImprensa
“Quem mora nas imediações do Palácio Guanabara, na rua Pinheiro Machado, e mais especificamente no perímetro que abrange as ruas Marquês de Pinedo, Paissandu, Ipiranga e Esteves Júnior e vai até a praça São Salvador, viu ou sentiu os efeitos do que ocorreu na noite de 11/7, quando a polícia reproduziu, agora com ainda mais intensidade, as cenas de violência vividas na mesma região em 20/6, ao reprimir um grupo de jovens que estendia a grande passeata daquele dia para protestar em frente à sede do governo estadual.
No entanto, quem queria saber o que se passava só pôde obter informações pela internet, especialmente através do material veiculado pela Mídia Ninja, cujo trabalho foi referido em artigo publicado recentemente neste Observatório [ver aqui].
Muito ágil quando se trata de excitar o público diante de crimes de grande potencial de repercussão, como o da prisão do casal Nardoni ou o do sequestro e morte da jovem Eloá Pimentel, a mídia comercial não se animou nem sequer a dar flashes, menos ainda a interromper a programação para passar a transmitir ao vivo – embora tivesse todas as condições para isso – os conflitos que começaram na frente do palácio e se estenderam pelas ruas vizinhas. Espetáculo não faltava: foram exuberantes explosões de bombas de gás, incêndios em sacos de lixo, tiros de balas de borracha, invasão a uma clínica e agressões e prisões indiscriminadas, que duraram até o início da madrugada.
Cobertura tendenciosa
Como em outras ocasiões recentes, a Mídia Ninja cumpriu um belo papel ao reportar em tempo real, de vários ângulos, o que ocorria, mas a crítica à grande mídia permanece relevante, especialmente porque o acesso à internet em banda larga não alcança a maioria da população.
Se analisarmos a imprensa tradicional, o único jornal carioca a fazer uma cobertura adequada desse conflito foi O Dia. No site do Globo, apenas na manhã seguinte, mesmo assim no blog “Nas redes” – uma seção de tecnologia dedicada a “novidades, análise e o burburinho nas redes sociais” –, aparecia uma relação de vídeos produzidos na noite anterior, acusando “novas denúncias de truculência” da polícia. No espaço da reportagem própria do jornal, nada. Ou melhor, uma notável menção sobre jovens que “fumavam maconha” durante confrontos na passeata no Centro da cidade. Importante alerta: estamos para descobrir novas propriedades da erva maldita, capaz de incitar à agressividade e à destruição.
Na TV das Organizações Globo, pior: um compacto de cenas de manifestantes com o rosto coberto atirando pedras e rojões contra – supostamente, pois a imagem não mostra – a polícia que guardava o palácio, com destaque para o close no capacete de um deles, com uma caveira branca desenhada sobre o fundo escuro. (Caveiras, como sabemos, só são lícitas nas estampas das roupas e acessórios da moda ou quando ostentadas pelo Bope, atravessadas verticalmente, nesse caso, por um punhal). Nada sobre a ação da polícia, testemunhada pelos moradores da região.
A reprodução do discurso oficial
No caso da GloboNews, um canal pago que, por sua definição “all news”, estaria obrigado a interromper a programação para transmitir acontecimentos de grande relevância e impacto como este, apenas um “vivo” no Jornal das Dez com a mesma repórter que denunciara o ataque da polícia ao hospital Souza Aguiar, na manifestação de 20/6 – cena semelhante à ocorrida agora diante de uma clínica vizinha ao palácio, onde manifestantes se refugiaram e foram perseguidos pelos policiais, e que foi documentada pelos “ninjas”.
Na manhã seguinte, o canal exibiria o mesmo compacto veiculado na TV aberta, curiosamente seguido pela convocação do apresentador ao público: “você também pode mandar imagens aqui para o nosso site...”.
Só um tolo atenderia ao chamado.
Também de manhã, uma repórter entrava ao vivo falando numa grande “confusão” na frente do palácio e reproduzia enfaticamente o discurso oficial: o governador não toleraria excessos de nenhum dos lados, nem dos manifestantes nem da polícia. Nada importavam as cenas, que poderiam confrontar o pronunciamento da autoridade. Mais tarde, a repórter conseguiria a proeza de “informar” que a “confusão” começou quando um manifestante atirou uma bomba de gás lacrimogêneo contra os policiais.
O pessoal que transporta coquetéis molotov em caixas de papelão – como os “flagrados” bem à feição das câmeras, na passeata daquela tarde, no Centro – deve ter ficado perplexo. Onde será que se consegue comprar bombas de gás lacrimogêneo? Talvez no mercadão popular da Uruguaiana: os camelôs são muito antenados nas novas tendências e costumam fazer boas promoções no atacado. Ou mesmo no varejo: um é doze, três é trinta.
A não ser que sejam bombas de gás de fabricação caseira.
O testemunho da mídia alternativa
Fora do circuito tradicional, a Mídia Ninja conseguiu, mais uma vez, dar um quadro amplo do que ocorria, com sua câmera nervosa e a imagem frequentemente precária, dependente da qualidade da conexão, além das interrupções inevitáveis para a recarga do equipamento. Ainda assim, transmitiu o protesto diante do palácio, com suas múltiplas palavras de ordem – inclusive uma que apelava ao humor e perguntava: “Cabral, cadê você/a polícia está aqui pra te prender”; documentou a invasão da clínica Pinheiro Machado, que se transformou “numa câmara de gás”; mostrou policiais atirando para o alto dos prédios, nas imediações da praça São Salvador – o que, longe de configurar o sempre lamentado “despreparo” da polícia, revelaria uma atitude deliberada de intimidar quem, da janela de seus apartamentos, apoiava o protesto batendo panelas e filmando a ação repressiva; exibiu as cenas deprimentes de jovens deitados no chão, cercados na Senador Corrêa, uma rua estreita transversal à praça, para depois serem levados em um ônibus à delegacia – e o coro que denunciava “estão plantando prova, estão plantando prova!”. Ofereceu, enfim, o mais amplo testemunho dos acontecimentos daquela noite.
Ao mesmo tempo, permitiu perceber aspectos periféricos mas nem por isso menos importantes do que se pode obter numa cobertura desse tipo, digna dos melhores tempos da reportagem de rua.
Uma surpresa no meio do caminho
Foi quando a repórter que acabara de documentar a prisão dos jovens resolveu caminhar de volta ao Palácio Guanabara, para verificar se ainda havia algo por lá. No trajeto, deparou com uma mulher e um menino, aparentemente deslocados e que pareceram surpresos com o encontro. Conversou com eles, perguntou de onde eram – do Cantagalo, uma favela em Copacabana – e se tinham vindo ali também participar do protesto, se conheciam a Mídia Ninja, se tinham sofrido alguma coisa... eles balbuciaram que sim, estavam ali pelo protesto, conheciam a Mídia Ninja – o que evidentemente não era verdade –, não tinham sofrido nada, estavam só esperando um amigo do menino, e se despediram.
A repórter foi embora, mas logo flagrou dois policiais armados de fuzis correndo na direção de dois garotos, um deles aquele que ela acabara de entrevistar. Foi tomar satisfações, envolveu-se numa discussão veemente, pois os meninos eram acusados de ter roubado uma pessoa perto de uma banca de jornal. “Você não viu nada!”, disse o homem que os denunciara. “Eu vi sim, conversei com o menino, eu vi e mais sete mil pessoas que estão assistindo viram também!”.
Quem estava vendo certamente se indignou com a cena, porque viu a mesma coisa pelo olho da repórter.
No entanto, logo depois aparece a mulher, a mesma que havia sido entrevistada, e que, constrangida pela polícia, parecia querer tirar o corpo fora. Dizia que estava aconselhando os meninos a não fazer aquilo até que apareceu “essa piranha” – a repórter – para complicar a situação.
E a repórter, depois de tentar esclarecer, se afastou porque percebeu a história. Que, por si só, já renderia outra bela reportagem: quem eram aqueles dois garotos e aquela mulher, o que fizeram, o que representam diante dos helicópteros do governador, recentemente mostrados por uma rara reportagem da Veja?
Cenas fortuitas, mas muito reveladoras das surpresas que o jornalismo nos reserva, quando recuperamos a prática da boa reportagem que sai à cata do inesperado. Tão diferente do jornalismo amestrado das grandes corporações, que nos induz bovinamente a aceitar o mundo tal qual é.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade
Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de
jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando
contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico
(Editora Revan, 2007)
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