“Precisamos de uma imprensa onde sejamos patrões de nós mesmos”


Reproduzido do jornal Unidade nº 358 (maio/2013), do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo / Observatório da Imprensa

“O jornalista Raimundo Rodrigues Pereira tem 48 anos de profissão. Em sua bagagem jornalística constam a criação de dois dos mais importantes jornais de resistência à ditadura militar, o Opinião e o Movimento. Foi também editor das revistas Realidade e Veja. Hoje dirige a publicação Retrato do Brasil, que entre seus furos jornalísticos, mostra que há falhas no processo do chamado “Mensalão”. Esse ano, por todos estes trabalhos, será um dos homenageados do Prêmio Vladimir Herzog. O jornalista é o entrevistado deste mês do jornal Unidade.

A revista que você dirige, a Retrato do Brasil, deu um furo jornalístico ao mostrar que não houve desvio de dinheiro público no chamado mensalão. Mesmo assim, o trabalho jornalístico não mereceu a repercussão que uma novidade desta, em caso tão notório, mereceria. A que o sr. atribui o fato de a imprensa em geral e a Justiça em particular não terem dado ouvidos ao que a equipe da publicação conseguiu identificar de falhas no processo?

Raimundo Pereira –Não existe força política organizada suficiente para garantir um debate multilateral do caso do mensalão. Formou-se um grande consenso político para condenar os chamados mensaleiros. A oposição à direita ao governo do PT defende os métodos e a sentença pronunciada pelo STF. Na oposição situada à esquerda do governo, de um modo geral, prevalece a mesma posição. E nas forças políticas que compõem o governo são minoritárias as correntes que tentam promover um debate democrático do mensalão. Veja por exemplo que, até agora, a despeito de todo o trabalho que fizemos, não conseguimos ainda que a imprensa oficial, o rádio e a televisão públicos, cujo estatuto exige a apresentação de múltiplos pontos de vista sobre as questões relevantes, nos ouvisse para divulgar, com os meios que tem, que são expressivos, os fatos extremamente importantes que temos levantado.

O sr. considera que realmente existe uma ditadura midiática no Brasil que somente divulga o que interessa aos empresários da grande mídia. Qual a sua análise sobre a atuação dos jornalistas dentro dester contexto?

R.P. – É mais complicado que isso. A grande mídia mais conservadora tem um ponto de vista político claro e escolhe seus editores de forma a que eles orientem suas publicações dentro de determinados parâmetros que garantem a defesa desses pontos de vista. Mas as redações e os jornalistas têm certa autonomia dentro desses limites. Além do mais, há publicações com orientação política mais progressista do que essa grande mídia que também não deram importância ao nosso trabalho, nem estão apoiando nossa linha de investigação. Como já disse, a própria imprensa oficial não deu, até agora, importância aos fatos, extremamente graves, que relatamos.

Depois de ter passagens pela Veja e Realidade (duas publicações da editora Abril), o sr. foi um dos mais importantes nomes da chamada imprensa alternativa que ajudou a desmontar a ditadura militar brasileira. Como era fazer jornalismo nos anos da repressão e agora na democracia. Aliás, existe democracia hoje em dia em termos de meios de comunicação no Brasil?

R.P. – A grande diferença entre os dois períodos é a de que, antes, no campo político popular, em boa parte do tempo houve unidade no apoio à chamada mídia alternativa legal, cujo principal expoente nacional era o jornal Movimento formado por jornalistas progressistas e políticos do chamado grupo Autêntico do MDB. Deve-se notar, também, que O Estado de S. Paulo foi censurado durante parte do tempo da ditadura. No passado, o combate à ditadura foi feito por diferentes correntes políticas. Hoje, pode-se dizer, quando se fala em democracia, que é preciso qualificar esta palavra. Para mim, existe no país um regime de democracia burguesa, a democracia do grande capital: nela todos têm ampla liberdade para dizer e escrever o que pensam; mas poucos têm os recursos materiais para fazer um jornal como o Estadão ou a Folha, com capacidade para um trabalho diário de seleção e apresentação de fatos e comentários. E, do lado dos que estavam na oposição à ditadura pelos setores populares, não se criou uma cultura política suficiente para formar um governo que ampliasse a participação popular de forma a dar um passo adiante na qualidade da democracia sob a qual vivemos.

Poderia relatar em poucas palavras o que Retrato do Brasil descobriu em termos do chamado mensalão. Quais foram os documentos analisados pelos jornalistas de sua equipe. O que eles comprovam, exatamente?

R.P. – Estamos já há quase dois anos estudando o julgamento do mensalão. No segundo semestre de 2011 decidimos que o tema seria um dos grandes assuntos de 2012 e nosso editor, Armando Sartori, escalou a Lia Imanishi, nossa repórter, para estudar os documentos básicos do julgamento. Quando o julgamento começou, no segundo semestre do ano passado, estávamos o ACQ (Antônio Carlos Queiroz, nosso colaborador em Brasilia) e eu, estudando a intervenção da mídia, especialmente Veja, no mensalão. Na nossa diretoria, então com cinco pessoas, havia um intenso debate sobre a história, dada a diversidade de pontos de vista. Graças a isso fomos os primeiros a descobrir que Henrique Pizzolato, o petista que era diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil, e acusado de comandar um desvio de R$ 73,8 milhões da empresa para o esquema do mensalão, era inocente. Localizamos nos autos e estudamos preliminarmente os mais de cem apensos da auditoria feita sobre esses desvios. Mostramos que existiam e existem, é claro, amplíssimas provas de que o dinheiro não foi desviado mas, sim, aplicado efetivamente para a realização de serviços de promoção de vendas de cartões de bandeira Visa do banco. Para nós ruiu então a viga mestra do mensalão, a do desvio de dinheiro público para comprar deputados.

Qual a sua análise sobre a questão do marco regulatório da comunicação e sobre a posição que o Brasil tem em relação a outros países, como o Equador e a Argentina. O país está atrás destes países em relação à regulação os meios de comunicação?

R.P. – O governo Dilma Rousseff não quer saber de regulamentar as concessões públicas de rádio e televisão e o PT, há tempos, está acomodado na posição de achar que elegeu a presidente mas que ela tem todo o direito de ter uma posição contrária à sua nessa questão. Por outro lado, o PT sabe que, no atual Congresso, dificilmente teria condições de fazer passar uma legislação que force a regulamentação dessas concessões mesmo em termos que sejam apenas equivalentes aos de vários países capitalistas avançados que são vistos como modelo de democracia.

Por esse motivo, acho que, ao lado da luta política mais geral por uma lei que regulamente as concessões de rádio e televisão de forma a garantir um debate mais democrático das questões, deveríamos nos dedicar especialmente à construção de um movimento de unidade dos setores democrático-populares pela recriação de uma publicação nacional. Poderia ser, inicialmente, um semanário, com recursos e apoio político suficientes para ter peso na conjuntura política do País.


Qual a sua avaliação sobre a Comissão da Verdade que está sendo realizada no Brasil, já que as publicações que você trabalhou ou dirigiu tratavam exatamente de denúncias de assassinatos, torturas e maus tratos dos presos políticos brasileiros?

R.P. – Veja: nós não podíamos tratar dessas questões. Nem mesmo o Estadão podia, porque estava censurado. O que nos distinguia era o nosso caráter democrático-popular, o fato de cobrirmos as lutas camponesas, de denunciarmos o endividamento externo e a dependência do país, de propugnarmos por um outro tipo de combate a inflação. Quanto à Comissão da Verdade, acho que ela está fazendo um bom trabalho.

Recentemente, o jornal Unidade entrevistou o jurista Fábio Konder Comparato sobre a judicialização da censura. Na sua opinião, a Justiça age como um instrumento de censura no Brasil?

R.P.– Talvez sim, mas por um motivo que parece o oposto disso. Com frases como a de que a liberdade de imprensa não pode ter limites, muitos juízes defendem a atuação sem limites da grande imprensa burguesa, inclusive para caluniar pessoas e movimentos, através da divulgação escandalizada de detalhes irrelevantes de certos fatos.

Na sua avaliação, é mais difícil fazer jornalismo hoje em dia ou foi mais complicado durante a ditadura militar? Quais as diferenças que o sr. apontaria entre estes dois momentos em nossa profissão?

R.P. – A grande burguesia hoje é maior e mais concentrada em termos de poder econômico e está mais unida do que no passado do ponto de vista político. O patronato mudou e piorou, do ponto de vista político. Já tive patrões como o Fernando Gasparian, o único representante de entidade patronal cassado pela ditadura, um nacionalista e democrata. Por esse motivo é que acho que uma imprensa que seja de qualidade e na qual, de certo modo, sejamos patrões de nós mesmos, é uma tarefa do dia.”

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