“Presa e torturada durante a ditadura, a
atriz Bete Mendes, que foi a primeira a denunciar o coronel Brilhante Ustra,
fala sobre sua experiência e diz como foi humilhada, seviciada e vilipendiada
pelo regime militar
Sobrevivente
da ditadura, a atriz Bete Mendes, relatou à jornalista Eleonora de Lucena, da
Folha, sua experiência na prisão, onde foi torturada. Leia abaixo:
Sobrevivi à tortura
(...) Depoimento a
ELEONORA DE LUCENA
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Fui
presa duas vezes. Na primeira, não fui torturada fisicamente. Na segunda, foi
total. Fui torturada [em 1970] e denunciei [o coronel Carlos Alberto Brilhante
Ustra]. Isso me marcou profundamente. Não desejo isso para ninguém --nem para
meus inimigos. A tortura física é a pior perversidade da raça humana; a
psicológica, idem.
Não
dá para ter raiva [de quem me torturou]. A gente é tão humilhado, seviciado,
vilipendiado que o que se quer é sobreviver e bem. Estou muito feliz, sobrevivi
e bem. E não quero mais falar desse assunto.
Superei
isso com tratamento psicológico e com trabalho. Agradeço à família, à classe
artística, aos amigos que foram meu alicerce.
Carlos
Zara me convidou para fazer a novela "O Meu Pé de Laranja Lima", e
isso me salvou. Continuei o trabalho artístico, fui fundadora do PT, fui
deputada federal duas vezes e secretária da Cultura de São Paulo.
Comecei
a fazer teatro e cantar com seis anos de idade. Com oito já participava de
manifestações de alunos. Era do grêmio do colégio, depois fui para o diretório
da faculdade. Em bibliotecas públicas ou pegando livros emprestados lia tudo:
Rousseau, Marx, Mao, Lênin, Gorki, Aristóteles. Depois, adotei o codinome de
Rosa em homenagem a Rosa Luxemburgo.
VAR-PALMARES
Na
adolescência escrevi textos de peças de teatro. Quando fui presa, eles levaram
esses textos. Achavam que eles eram prova de crime, que depunham contra mim. Nunca
mais os recuperei. Era coisa tão pouca, boba, pessoal.
Quando
fecharam as portas à democracia, me senti usurpada, revoltada, aprisionada. Achei
que a única saída era entrar numa organização revolucionária contra a ditadura
militar. Entrei na VAR-Palmares. Fizemos aquela opção. Foi certa, errada? É
difícil julgar hoje.
A
minha visão era a revolução socialista: tirar poder dos militares, dos
opressores, do capitalismo selvagem. Deixar a gente governar para o bem de
todos, com todos participando.
Eu
tinha 18, 19 anos, e achava que podia fazer tudo. Não tinha consciência do
risco imenso que estava correndo. Era atriz de uma novela que explodia no
Brasil, "Beto Rockfeller", estudava ciências sociais na Universidade
de São Paulo e participava de uma organização clandestina revolucionária. Aí
deu zebra.
O
medo era a pior coisa que a gente sentia na época. Historicamente tem que se
reconhecer que nós entramos numa ditadura muito mais pesada do que foi dito no
passado. Isso vai sendo desdito atualmente pela Comissão da Verdade.
Hoje
não tenho medo de retrocesso, mas é preciso prestar atenção em manifestações
como de movimentos nazistas em vários países e no Brasil. Por exemplo? O
coronel Brilhante Ustra faz parte desse movimento. Ele tem um site. Há jovens
fazendo movimento nazista.
DEMOCRACIA
É
um receio. É preciso ser cauteloso em relação a movimentos que podem ser
prejudiciais ao avanço democrático. Mas impedir jamais, porque a gente legitima
a manifestação de todos, de opiniões diversas. É preciso cuidar da democracia
para que esses movimentos não cresçam.
Sou
política como qualquer cidadão. Sou cidadã, atriz, socialista. O socialismo se
constrói todo dia. Não temos o modelo socialista do passado, mas a gente
constrói um novo. Quero continuar trabalhando como atriz e viajar mais. Poder
viver essa democracia até morrer. Sonho político? Que o trabalho escravo acabe
no Brasil.
Estou
aqui viva e feliz. Minha vida é muito efervescente. Emendei três trabalhos na
televisão. Faço o que eu gosto: ser atriz. Não vamos ficar presos no passado. O
que eu tinha que dizer disse com todas as letras na época. "Revival"
não tem sentido. Meu assunto hoje é [a novela] "Flor do Caribe".
Problema
de audição? Tenho. É que eu fui torturada. [Fica com os olhos marejados].”
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