'Era mórbido, doentio. Continuavam perguntando pela pessoa que já tinham matado'


Virgílio Gomes da Silva Filho: "É impossível
aceitar que pessoas que mataram ocupem
cargos públicos. É ultrajante"

Filho de Virgilio Gomes da Silva lembra período de prisão e separação dos irmãos e da mãe

Vitor Nuzzi, RedeBrasil Atual

Virgilio Gomes da Silva Filho, 50 anos, carrega o nome do pai desaparecido em 1969 e faz um depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo interrompendo várias vezes sua fala devido à emoção. Lembra do dia em que ele, os irmãos e a mãe, Ilda, foram presos em São Sebastião, litoral norte paulista, interrogados e separados. A mãe foi presa e torturada na Operação Bandeirante (Oban) e depois levada ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops). As crianças não escaparam do interrogatório.

“Estávamos numa sala pequena, e uma mulher insistia muito perguntando onde estava meu pai, sobre armas. É totalmente absurdo pessoas que se intitulam profissionais da lei interrogar crianças. Provavelmente meu pai já estava sendo morto. Acho que era mórbido, doentio. Continuavam perguntando pela pessoa que já tinham matado”, disse Virgilio, um dos participantes de seminário realizado hoje (9) pela comissão paulista, que durante toda a semana escuta testemunhos de filhos de vítimas da repressão. À época, ele tinha 7 anos.

“Como qualquer família de classe operária, tínhamos pouca coisa, mas éramos felizes”, lembra Virgilio. Aos poucos, os filhos foram percebendo que o pai tinha de se ausentar bastante. E recorda com detalhes do dia da prisão, em 1969. “Num dia chuvoso, estávamos ansiosos para ir à praia, mas a chuva não deixava. Eu e meu irmão (Vladimir) estávamos na varanda da casa e vimos uma comitiva de carros, batendo de casa em casa, até chegar na nossa. Entraram empurrando tudo, com metralhadoras, revólver. Aquilo era um caos na minha cabeça.” Antes de ser levado, ele teve tempo de ver em um carro uma pessoa amordaçada, ensanguentada. “Era meu tio Francisco, irmão do meu pai.”

Após o interrogatório, Virgilio e irmãos – até a pequena Isabel, com poucos meses de vida – foram levados ao Juizado de Menores. Ele recorda da casa onde ficou durante quase três meses. “Não sei onde era, nunca procurei saber”, diz. “Era uma casa grande, tinha um quintal no fundo, onde as crianças brincavam. Eles raspavam o cabelo das crianças. Eu me revoltei e não deixei cortar. Ruim mesmo era de noite (interrompe a narrativa). Eu não queria que chegasse... Tinha umas luzes meio violetas... De noite, ele (seu irmão Vladimir) ia na minha casa e me levava para o berço da Isa (como a família se refere à caçula). A gente dormia debaixo do berço dela”, conta, com voz quase inaudível. “Ele me levava na cozinha, me fazia pegar o leite Ninho e a gente fazia mamadeira para ela.”

As crianças foram resgatadas e “distribuídas”, como diz Virgilio, entre os tios. A mãe continuava presa – durante nove meses, dos quais quatro incomunicável. Ele, por exemplo, ficou com Nair, irmã de Ilda. “Comecei a estudar na escola Carlos Gomes, em São Miguel Paulista (zona leste de São Paulo), vendia sorvete na rua.” Quando as crianças finalmente se reencontraram, na casa de uma das tias, foram feitas fotos, levadas para Ilda na prisão. “A carcereira queria que eu entregasse (as fotos de volta). As companheiras se revoltaram e eu pude ficar com elas. Cada coisa que a gente vai lembrando é uma punhalada. É difícil a gente relembrar do passado sem chorar.”

Quando Ilda foi libertada, a família foi morar em Poá, na Grande São Paulo. Até que eles decidiram que não havia condições de continuar no Brasil. A Ação Libertadora Nacional (ALN), na qual Virgilio Gomes militava, providenciou a ida para o Chile, onde eles ficaram um ano. “Todo mundo com nome frio”, recorda o filho. Depois foram para Cuba. “Acho que conseguimos ter uma vida digna, uma infância feliz.” Todos viraram engenheiro, cada qual com sua especialização: Virgilio mecânico, Vladimir e Isabel geólogos e Gregório, civil.

“Literalmente, fomos adotados pela Revolução Cubana”, diz Virgilio, que retornou ao Brasil apenas em 1994, após 21 anos em Cuba. “A gente nunca passou o trinco. Os vizinhos entravam como se fossem da família.”
Ele defende que o país siga o exemplo de países como Argentina e Uruguai. “É impossível aceitar que pessoas que mataram ocupem cargos públicos. É ultrajante. Outra coisa importante é chegar aos restos mortais dos desaparecidos. Não importa quanto tiver de escavar.”

A família ainda se mostra revoltada com a forma como o pai, conhecido como Jonas, foi retratado no filme O que é isso, companheiro?, de 1997. “Fomos ao lançamento. Foi revoltante. Não é porque é meu pai, é porque é história. As coisas têm de ser faladas como aconteceram”, diz Virgilio, para quem usaram atores conhecidos como comediante “para ridicularizar a esquerda brasileira”.

Ilda diz que em nenhum momento ela e os parentes foram procurados. “Fizeram um Virgilio completamente diferente. Nesse filme mataram o Virgilio e o Toledo também”, afirma, referindo-se ao líder comunista Joaquim Câmara Ferreira.

Dono de uma pequena metalúrgica, Virgilio acredita que a Comissão Nacional da Verdade tem poderes para, por exemplo, afastar torturadores de cargos públicos. “Para constar dos livros de história, para que a família (dos agentes de Estado envolvidos com tortura) carregue essa vergonha, como a gente teve de carregar.”

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