Marcelo Semer, Terra Magazine / Blog do
Marcelo Semer
‘O coronel reformado Brilhante Ustra
pleiteou na Justiça o direito ao silêncio para depor na Comissão Nacional da
Verdade. Mas não o usou.
Ao contrário, viu-se aos berros negando o
fato de ter havido tortura na ditadura e se arrostando na função de salvador de
nossa democracia.
A explicação é absurda, mas não inédita.
Hitler também dizia agir em legítima defesa
quando, tornando a Alemanha uma ditadura racista e sanguinária, perseguiu e
matou aos milhões judeus, homossexuais, ciganos, comunistas e doentes mentais. A
“pureza” salvaria a nação das conspirações de bolcheviques e sionistas…
Alegar que militares torturaram pela
democracia é mais ou menos como dizer que o assaltante atirou só porque a
vítima reagiu.
É o avesso do avesso do avesso da história,
pois foi a ditadura, ao se instalar, que proibiu os meios legítimos de
protesto, como eleições, discursos, aulas, passeatas etc. Quantos não foram
presos e torturados apenas por crimes de opinião?
Muitos dos que se afirmam hoje saudosos do
regime militar costumam apontar a alta criminalidade como decorrência de seu
fim. Afinal, quem passa os dias vendo crimes violentos reproduzidos sem cessar
na televisão, pode supor que na ditadura não havia nada disso.
Mas o que não havia era a liberdade, ou o
interesse, de informar.
Os índices de criminalidade não ficaram em
nada estacionados durante a abrupta urbanização do país, mesmo nos tempos do
“milagre econômico”. Foi nesse período, aliás, que a criminalidade urbana mais
se expandiu.
A imersão da adolescência no mundo do crime
ficou imortalizada nas telas com “Pixote, a lei do mais fraco” (1981), e o país
recebeu o fim do regime militar com um tráfico de entorpecentes em plena
expansão –o filme Cidade de Deus ajuda a entender a transformação do crime,
desde os anos 60.
Nossos presídios, ademais, viviam
totalmente abarrotados.
A promiscuidade entre o público e o privado
é matéria bem retratada no documentário Cidadão Boilesen, a partir do apoio de
empresários a centros de tortura e os lucrativos negócios de suas empresas com
o Estado –fato que ajuda a entender porque a comissão da verdade descobriu
visitas periódicas de representantes de industriários naquelas masmorras.
Nem a violência nem a corrupção, portanto,
nasceram na democracia.
Mas a constância da tortura e a prática de
mascarar execuções com resistências, comum nos anos de chumbo, se impregnaram
fortemente na repressão como um legado sombrio.
Em relação à criminalidade, a ditadura tem
pouco a exigir e muito a ser cobrada.
Torturadores e homicidas, aliás, não se
sentaram no banco dos réus, porque o STF entendeu que seus crimes seriam conexos
com os políticos, que foram os objetos da lei da anistia.
Nos países vizinhos da América do Sul, até
os generais que ordenaram as torturas e matanças já se encontram condenados.
A decisão brasileira foi fortemente
criticada na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois contrária à
consolidada jurisprudência que entende inaplicável a autoanistia em crimes
contra a humanidade.
Mas nem mesmo a irresponsabilidade penal é
capaz de apagar ou reescrever a história.
Várias decisões judiciais reconheceram a
tortura no Doi-Codi paulista, seja para retificar as certidões de óbito das
vítimas, seja para declarar sua autoria, caso em que já foi condenado o próprio
coronel Ustra.
Como no direito penal, em que ao agressor
não cabe invocar a legítima defesa, militares e civis envolvidos no golpe de 64
jamais passarão por arautos da democracia que violaram sem pudores ou
escrúpulos.
Mas é sempre bom assegurar a eles a
possibilidade democrática de se calar perante a autoridade ou mesmo de ter seus
brados criticados.
Nos interrogatórios dos porões não foram
permitidos silêncios. Nem que os gritos, de dor, fossem por nós ouvidos.”
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