Ayrton Senna 19 anos depois


Urariano Mota, Direto da Redação

Parece que foi ontem. No mais recente primeiro de maio fez dezenove anos da última corida de Ayrton Senna.

Quando Senna morreu, estávamos eu, Francesca, Lupicínio e Luanda no bar de Eduardo, no mercado público da Encruzilhada, no Recife. Tomávamos o café da manhã ali, naquele domingo de primeiro de maio. Sobre uma prateleira do bar o português ligara a televisão, para que os clientes assistissem a mais uma corrida da Fórmula 1. Com sinceridade, eu lhes digo que a televisão desligada, para mim, seria bem mais emocionante. Portanto, além de objetos coloridos que pasando na tela deixavam um zumbido de voo de besouro, eu nada mais via. Me concentrava no cuscuz com galinha, que o safado do português dizia ser “à lisboeta”, para enaltecer o tempero e o preço de uma galinha à brasileira.

Súbito, um grito. Súbito, vários gritos. Os alcoólatras das primeiras horas do dia se levantam. “Estão bêbados”, me digo, e nem sequer olho para a televisão. Mas o som chega mais alto, e me viro para ver: Eduardo se esquecera de tudo e se plantara bem juntinho à tela, como se surdo fosse. Ele parecia querer entrar em Ímola naquele instante, procurando entrar na imagem da televisão. Os bêbados e os sóbrios também se fechavam, compactos, em pé. Então ouço, se não me falha a memória, “Senna bateu, Senna bateu ... o acidente é sério ... a cabeça dele se mexeu... ele está vivo...”, e mais adiante, “nós torcemos para que ele esteja vivo... é muito sério.... bateu a mais de 200 por hora... pelo amor de Deus, todos torcemos para que esteja vivo....”. Então eu soube que Senna havia sofrido um acidente muito sério. Paguei a conta e saí. Notei que Eduardo nem contou o dinheiro pago.

As pessoas muito amadas, achamos sempre que nunca morrem. É uma luta desigual, em que a nossa derrota é certa, mas assim somos. Com o super-herói acontece o mesmo. Lembram? Se ele está amarrado em um carro, se o carro vai ao abismo, sabemos sempre que no último minuto ele se livra das cordas e se agarra num penhasco salvador. Aquele tiro fatal na têmpora resvalará pela orelha, arrancando-lhe alguns fios de cabelo, sempre. Dos males do fígado, da coluna, do câncer e de outras terríveis moléstias ele não está imune, sabemos. Mas padecer dessas coisas de toda a gente é apenas o colorido da trama, o suspense, o seu movimento. No final, esperamos, porque já sabemos, o super não morrerá no fim. O seu destino é uma vitória prévia, sempre.

No decorrer daquelas horas do domingo, eu e o resto da gente esperávamos mais uma vitória de Senna. Ele batera antes, outras vezes. Ele escapara milagrosamente de acidentes para surgir em pé, em meio à poeira, imune, sem riscos, sem amasso no vinco do macacão. Era mais que um caubói, como um Clark Kent sem óculos 24 horas por dia, com um sorriso de kriptonita. “Se depender de mim, vocês, jornalistas, irão esgotar todos os adjetivos do dicionário”, dizia, entre uma corrida e outra. Aquilo passava, passaria, não podia mesmo ser muito sério. As pessoas, no entanto, não descolavam os olhos da televisão. Em dúvida, até o fim, que foi: “Ayrton Senna está morto”.

Houve muita estupidez proclamada então. Dos mais humildes, que diziam, “Senna foi o produto mais forte que tive para vender”, aos um pouco mais enfáticos, “Senna era o Brasil que dava certo”, até chegar aos bárbaros da nossa memória, que proclamavam, “O Brasil perde o seu maior herói”. Essas coisas, a formar um séquito, terminaram por empanar o brilho real do  trabalho de Senna, do seu real talento, da sua real pessoa, do seu real, à margem do valor em dólares. Havia nele, passada  a tempestade das lágrimas, passada a rendição ao culto do espetáculo, passada a admiração por seu sucesso, havia nele uma disciplina, um método de trabalho, uma paixão pelo que fazia, que muito nos serve, a todos, corredores, sedentários, amantes das pistas ou das artes. Havia nele, nesse homem que se foi aos 34 anos, um drama, ou dramas que reclamam um criador, sim, um criador, daqueles que ganham um salário mínimo por mês, daquele tipo de imortal brasileiro, que é imortal porque não tem onde cair morto.

Somente agora, à distância de anos depois, ganhamos algo semelhante à sua frieza. Ainda que não tenhamos a sua fé, aquela fé superpoderosa que dizia “não tenho limites. Estou com 33 anos e acho que ainda tenho muito pela frente”. Nem mesmo o super-homem seria capaz de afirmar algo parecido. Clark Kent sempre soube que o excesso de exposição à kriptonita era o seu limite: matava.”

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