O deputado Marco
Feliciano, o novo
líder das minorias
da Câmara.
Foto: Gustavo Lima
/ Agência Câmara
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Matheus Pichonelli,
CartaCapital
"Foi, como esperado, um dia para ser
esquecido na história do Congresso. O acordo entre as lideranças partidárias na
semana passada, que deu de bandeja ao Partido Social Cristão a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara, possibilitou ao país assistir a um movimento
inédito: um presidente de claras inclinações homofóbicas ser eleito
representante das minorias sobre as quais nutre um desprezo declarado.
Na véspera da votação, que apenas chancelou
o inevitável, grupos ofendidos pela escolha fizeram alarde na sala da comissão.
No dia seguinte, foram impedidos de acompanhar a votação por decisão do
presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). A medida provocou mais
revolta, agora entre os deputados. O então presidente da comissão, Domingos
Dutra (PT-MA), renunciou. Foi acompanhado por colegas como a deputada Luiza
Erundina (PSB-SP). “Vamos sair juntos. Esta comissão não é mais a Comissão dos
Direitos Humanos”, disse ela.
Assim o pastor Marco Feliciano (PSC-SP)
ganhou terreno livre para ser eleito com 11 votos a favor e apenas um branco. Terá
agora, oficialmente, a chance de combater por dentro o que chama de privilégio
de uma minoria rude e barulhenta. Uma minoria cujas bandeiras ele reluta em
reconhecer como legítimas.
Durante a semana, quando seu nome foi
aventado e as reações se multiplicaram, o pastor levantou a bandeira branca
para cravar a haste na garganta de quem, com outras palavras, promete combater.
Disse não ter nada contra os atores e sim contra o ato; negou ser racista com
base em sua ascendência negra. Acuado, disse que o autoritarismo não reside em
negar direitos a grupos marginalizados, mas sim na não-aceitação das críticas
aos marginalizados. Por fim, disse ser especialista em perseguição, já que na História
ninguém sofreu mais acossamento do que os cristãos.
Trata-se de um jogo retórico: o pastor se
apoia em uma série de verdades, como a perseguição histórica aos cristãos, para
sustentar uma inverdade básica, quase lógica. Basta lembrar que, pela avenida Paulista,
não há notícias de cristãos sendo devorados por leões por andarem com a Bíblia
debaixo do braço. Nenhum crente, de qualquer fé, terá de gritar alto para poder
existir ou manifestar sua crença: trata-se de um direito garantido e assimilado
ao longo dos anos.
Mesmo assim a inversão do papel de vítima é
invocada para legitimar uma ofensa. “Reação”, dessa maneira, virou
“autoritarismo” e “fundamentalismo”, mero “ponto de vista”. O que o pastor
Feliciano não parece ter entendido é que a revolta provocada por sua escolha
não se explica pelo fato de ser cristão; explica-se pela demonstrada
ignorância, para não dizer má fé, sobre o cargo que pretende ocupar, os grupos
que pretende representar, os crimes que se nega a condenar. Pois ele a partir
de agora será o responsável por receber e encaminhar investigações de abusos
que hoje evita reconhecer a gravidade.
Ao assumir a comissão de Direitos Humanos,
Feliciano provocou, não por acaso, um embaralhamento semântico com vistas a
confundir noções como “privilégio”, “perseguição”, “preconceito”, “minorias”. Essa
confusão, mais do que vídeos antigos e comprometedores sobre Arca de Noé e
“câncer gay”, escancara o paradoxo da sua escolha. Exemplo: quando o pastor diz
saber o que é ser discriminado e usa como exemplo a morte de um bebê na barriga
de sua mulher numa fila de hospital, coloca uma tragédia pessoal, de alcance
universal, na rota do preconceito. Confunde descaso do poder público com
perseguição; descaso é universal, perseguição é específica. O fato de ser cristão
e heterossexual, portanto, não teve a menor influência no episódio, em si
lamentável.
A lógica da perseguição, é bom que se
lembre, opera em outro campo. Ela não se manifesta apenas quando se estoura uma
lâmpada no rosto de pedestres supostamente vulgares; se manifesta também quando
se classifica, isso sim de forma autoritária, o que é ou não vulgar. É a mola
propulsora do discurso de ódio, manifestada, por exemplo, quando se usa uma
interpretação bíblica para impedir a ampliação de acesso a direitos básicos. Em
nome de quê? Da suposta proliferação da espécie? Da busca pela moral familiar? Não:
em nome da manutenção da ordem. Mais: da manutenção do medo da desordem. Se
pastores, padres e líderes espirituais aceitarem que as pessoas podem viver em
paz com quem quiserem, se quiserem, da forma como quiserem (famílias
monoparentais, pais de mesmo sexo, solteiros por convicção), não terão mais o
que fazer nem discursar. Não há Céu sem a projeção do Inferno e não há
transcendência sem pecado. Sem o inimigo declarado, a arma contra o inimigo
perde seu valor de uso e de troca. O mercado apodrece. Para quem se apoia no
discurso do medo (medo do caos, medo da vulgaridade, medo da decadência), a
liberdade de quem aceita a dor e a delícia de ser o que se é, para citar a
música, é o maior dos infernos.
E isso não tem nada a ver com a fé.
Tem a ver, é bom repetir, com a manutenção
da ordem: manda quem sempre mandou, obedece quem sempre obedeceu. Ainda que a
manutenção da ordem seja propagada à base da confusão de conceitos. Destes,
nenhum foi mais maltratado em todo o episódio do que a ideia de luta pelo
direito básico de existir – que pouco tem a ver com o propalado privilégio
citado pelo pastor. À frente da comissão, o deputado Feliciano deveria saber de
antemão que direito básico não é gritar mais alto ou se rebelar. É poder andar
nas ruas como bem quiser e com quem quiser. Sem que por isso, e não por outro
motivo, chegar vivo em casa seja um mero lance de sorte.”
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