Urariano
Mota, Direto da Redação
“Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando
escreveu: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a
característica nacional do Brasil”. Sim, por caminhos tortos, porque depois
de uma frase tão magnífica, de gênio do futuro, Joaquim Nabuco sem pausa
continuou, num encanto que esconde a crueldade:
“Ela (a escravidão)
espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a
primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou;
ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas
legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas
sem pesar, suas lágrimas sem amargor...”.
Penso na primeira frase de
Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil, nestes dias em que o
Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança maldita. Não quero
falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da
nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas,
cuidado, domésticas agora têm direitos”. Falo e penso nas empregadas
que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos eu vi
Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook,
concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A
sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou
de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse
importunada. Tão natural... os fãs de telenovelas não viam nada de mais na
mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho.
Em outra ocasião, numa
terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente,
empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela
uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a
servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de
matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob
uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva,
oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora,
por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se
explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o
chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada,
parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.
O desconhecimento de
direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a
falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, creio que
sobreviverá até mesmo à nova lei. É histórico no Brasil, atravessa gerações e
atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda. É como se
estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até
antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas
vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado
as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso
nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem.
É justo, não é? O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a
cidadania só alcança os iguais, é claro.
Em todas as situações
desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar
atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são
pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres,
notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A
ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa
come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais
limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não
exagero. Não faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar
esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de
São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem
nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas
não têm sexo no WC.
Não posso
concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às
domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais. Menos
para as empregadas, é claro. "A escravidão permanecerá por muito tempo como
a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco.”
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