Solidão. Às vezes
a presidenta que pretende
erradicar a
miséria parece isolada.
Foto: Dida
Sampaio/Estadão Conteúdo
|
Mino Carta, CartaMaior
“Nos seus derradeiros momentos como
senador, Fernando Henrique Cardoso andava pelos corredores do Congresso
acompanhado por Norberto Bobbio. Digo, carregava um ensaio do pensador
italiano, a analisar um assunto veementemente provocado pela queda do Muro de
Berlim: ainda vale falar de direita e esquerda?
A tese de Bobbio pode ser resumida na seguinte ideia: é automática e naturalmente de esquerda quem se preocupa com os destinos dos desvalidos do mundo e se empenha pela igualdade. Recordam? Liberdade, igualdade, fraternidade. A liberdade por si só não basta à democracia, a igualdade é fundamental. Quanto à fraternidade talvez seja admissível substituí-la pela solidariedade.
A julgar pelo desvelo de ponta de dedos com que FHC carregava o livrinho (ia escrever, sobraçava, mas a obra é de porte modesto) me entreguei à suposição de que o futuro presidente da República rendia-se de bom grado aos argumentos do autor, a confirmar crenças pregressas. No entanto, pouco tempo após, soletraria: esqueçam o que eu disse.
À sombra de FHC presidente, o PSDB tornou-se um partido de direita. Em lugar de abrandá-las, acentuou as disparidades ao aderir à religião neoliberal e sujeitar-se às vontades e interesses do Tio Sam. Sem contar a bandalheira da privataria, a compra dos votos a favor da reeleição e o “mensalão” tucano.
Ao entrevistar o presidente Lula no fim de 2005, pergunto se ele é de esquerda, responde nunca ter sido. “Você sabe disso”, diz, ao recordar os velhos tempos em que nos conhecemos, já faz 36 anos. Jogo na mesa a carta de Norberto Bobbio, observo: “Você sempre lutou a favor da igualdade”.
Deste ponto de vista, há toda uma orientação esquerdista nas políticas sociais implementadas pelo governo Lula e hoje fortalecidas por Dilma Rousseff. E é de esquerda em mais de um aspecto a política econômica do governo atual, mais ousada do que a do anterior ao se desvencilhar das injunções neoliberais.
Nada irrita e assusta mais a direita brasileira do que qualquer tentativa de demolir de vez a senzala. É o que me permito explicar ao correspondente de um jornal americano, perplexo diante dos comportamentos da mídia nativa, sempre alinhada de um lado só. Digo: ela é o instrumento da casa-grande. O estupor do colega do Hemisfério Norte não arrefece: “Mas os governos Lula e Dilma produziram bons resultados para todos, senhores incluídos…”
Defronto-me, de súbito, com a dificuldade de aclarar uma situação incompreensível aos olhos do semelhante civilizado, capaz de usar, para medi-la, o metro próprio da contemporaneidade do mundo. E aos meus condoídos botões segredo: difícil, difícil mesmo, talvez impossível, trazer à luz da atualidade este cenário tão peculiar, de um país que viveu três séculos e meio de escravidão e que, de certa forma, ainda não digeriu o seu passado.
O jornalista americano arregala os olhos:
“Mas como é possível que Dilma Rousseff tenha índices de aprovação
elevadíssimos e sofra ao mesmo tempo o ataque maciço da mídia?” A presidenta,
respondo, pretende erradicar a miséria… Logo percebo que a peculiaridade
verde-amarela envolve o próprio governo. Há momentos em que Dilma parece
isolada. Solitária. Ela é obrigada à aliança com o PMDB para garantir a maioria
em um Congresso
inconfiável e a postura do próprio PT é, no mínimo, dúbia. Falta ao Brasil
desta hora um verdadeiro partido social-democrático, esquerdista no sentido de
Norberto Bobbio.”
Comentários