Luiz Gonzaga Belluzzo e Júlio Gomes de Almeida, CartaCapital
“Para se manter na moda, up to date, o
Brasil concebeu o seu próprio “abismo fiscal”. A encrenca foi criada na Lei de
Diretrizes Orçamentárias, que obriga a fixação do superávit primário em valores
correntes. Esse inconveniente poderia ser contornado pelo envio ao Congresso
Nacional de um projeto de lei que alterasse a LDO. Uma manobra que
provavelmente suscitaria os mesmos gritos e sussurros da turma brava.
A fixação do superávit primário na Lei
Orçamentária equivale, na prática, a conter o papel anticíclico da política
fiscal. Excetuados os fanáticos nativos do Tea Party, nenhum economista sensato
aceitaria impor tal obstáculo à atividade contracíclica do governo, sobretudo
nos tempos bicudos de hoje.
Mantega usa método
empregado na “era das privatizações”, no anos 1990. Foto: Pedro Ladeira
/Frame/Estadão Conteúdo
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Constrangido por essa impropriedade, o
governo recorreu a expedientes contábeis qualificados de “contabilidade
criativa”. Essa “criatividade” concentrou-se, sobretudo, na antecipação de
dividendos de bancos estatais e no uso de recursos do Fundo Soberano, criado
para abrigar poupança fiscal, passível de ser utilizada para recompor o
resultado primário. O governo também se valeu da prerrogativa, inscrita na lei,
de abater os investimentos do PAC.
Não é novidade o uso de receitas não
recorrentes para engordar o superávit primário. Assim foi feito nos anos 1990,
na “era das privatizações”. Isso não impediu a escalada da dívida pública entre
1995 e 1999. Nesse período, a dívida saltou de 28% do PIB para 44,5%.
É óbvio que a forte desaceleração da economia
em 2012 iria provocar, como efetivamente provocou, a queda da receita. A
evolução dos ingressos fiscais sofreu, ainda, as consequências das desonerações
criadas pelo governo para aliviar custos tributários incidentes sobre o consumo
e o investimento, com o propósito de obviar uma queda mais intensa do ritmo de
atividade. Não menos importante foi o efeito do baixo crescimento e das
desonerações sobre as receitas de estados e municípios. Isso jogou uma carga
mais pesada sobre a União no esforço de compor o superávit primário, além
obrigar o governo federal a prover as necessidades de financiamento dos entes
subnacionais.
Diante da rigidez das despesas correntes, o
ajuste necessário para garantir o superávit primário prometido mediante o corte
de gastos contribuiria para danar os investimentos e degradar ainda mais o
desempenho da economia. Até mesmo entre os críticos da política econômica,
tornou-se consensual a opinião que afirma a necessidade da elevação da taxa de
investimento para sustentar o crescimento.
Assim, a redução do superávit primário numa
conjuntura de forte desaceleração do crescimento deve ser interpretada como
natural e desejável. Ainda em 2011,
a fase “baixista” do ciclo de consumo já abalroava o
ritmo de atividade, afetando, sobretudo, o investimento em capital fixo na
indústria de transformação, pressionada pelas importações predatórias, as
filhas diletas do câmbio valorizado. No segundo semestre de 2011, o crescimento
da economia brasileira aproximou-se de zero, transmitindo para 2012 uma perspectiva
desanimadora para o investimento privado. Esse quadro configurou-se
simultaneamente ao agravamento da crise internacional.
O desfalecimento do ciclo de investimento e
consumo que se seguiu à recuperação de 2010 exigiria uma ação enérgica do governo,
diferente das empreendidas em 2008. Em primeiro lugar, a abrupta desaceleração
da economia e o agravamento da crise global impôs à política monetária uma
redução mais rápida e intensa da taxa Selic.
Em nossa opinião, exarada ainda em 2011, a ação do governo
deveria se concentrar na aceleração do investimento dito autônomo: dispêndio em
infraestrutura e gastos de capital da Petrobras e da Eletrobras. Há de tomar em
consideração que, em um ambiente de crise internacional aguda e de extrema
agressividade de nossos parceiros comerciais, os efeitos desejados da elevação
do investimento autônomo sobre o emprego, a renda e a receita fiscal podem se
dissipar. Por isso, foram adequadas as ações do Banco Central do Brasil na
gestão da política monetária e cambial.
Diante de sua situação fiscal, o Brasil não
tem razões para reproduzir as recomendações dos republicanos nos Estados Unidos
ou da senhora Merkel para a Europa do euro.
É bom esclarecer que não se trata de
justificar a aceitação de um déficit primário, o que acarretaria efeitos
negativos para a dinâmica da dívida pública. Apesar dos chiliques de alguns
analistas, a dívida pública brasileira tem sido administrada de forma adequada.
Seja qual for o critério utilizado para avaliar a trajetória do endividamento
público, em termos brutos ou líquidos, o desempenho fiscal do governo,
observado por este ângulo, é satisfatório. A dívida líquida equivale atualmente
a 35% do PIB.
É provável que o comportamento da dívida
pública seja ainda melhor por conta dos efeitos do declínio dos juros nos
próximos anos. Explicamos: a queda dos juros não produziu ainda as benesses
reclamadas pelos mais afoitos porque, como é óbvio, boa parte do estoque da
dívida ainda carrega os juros velhos. Mas os dados do Tesouro mostram reduções expressivas
das taxas de juros (prefixadas ou indexadas a índices de preços) nas novas
colocações.
Para encerrar, vamos recorrer a um artigo
recente de Paul Krugman no The New York Times: “Uma economia não é como uma
família. Uma família pode decidir gastar menos e tentar ganhar mais. Mas, na
economia como um todo, os gastos e ganhos andam juntos: meus gastos são a sua
renda, o seu gasto é minha renda. Se todo mundo tenta reduzir os gastos ao
mesmo tempo, a renda vai cair – e o desemprego vai subir… Nesse ponto, os governos
precisam intervir, passando a apoiar suas economias enquanto o setor privado
recupera o seu equilíbrio. E em certa medida isso de fato aconteceu: a receita
caiu drasticamente na crise, mas os gastos realmente cresceram conforme
programas como o seguro-desemprego se expandiram e o estímulo econômico
temporário entrou em vigor. Os
déficits orçamentários aumentaram, mas isso foi uma coisa boa, provavelmente a
razão mais importante pela qual não tivemos um replay completo da Grande
Depressão.”
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