Um dos comandantes
do Dops e do DOI-Codi,
o delegado Sérgio
Paranhos Fleury se transformou
em um dos rostos
mais conhecidos da repressão
(Foto: José
Nascimento/Acervo UH/Folhapress) |
A Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo "Rubens Paiva" realizou hoje (29) audiência pública na
Assembleia Legislativa para pedir o tombamento do prédio onde atualmente está
instalada o 36ª Distrito Policial, no bairro do Paraíso, zona sul da capital, e
sua transformação num memorial contra a tortura. O edifício localizado na
esquina das ruas Tutoia e Tomás Carvalhal abrigou oficialmente, a partir de 1969, a sede do
Departamento de Operações e Informações e o Centro de Operações de Defesa
Interna, órgãos repressivos da ditadura militar mais conhecidos pela sigla
DOI-Codi. Ali morreram, entre outros, em 1976, o metalúrgico Manuel Fiel Filho
e o jornalista Vladimir Herzog.
"O local não é arquitetonicamente
fundamental, mas historicamente fundamental. Foi um lugar determinante para a
história do país nos últimos 50 anos", afirma Ivan Seixas, presidente do
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), uma das
entidades que propõem o tombamento do 36ª DP. Seixas foi um dos muitos
brasileiros que passaram pelas celas do DOI-Codi e foram submetidos a sessões
de tortura em suas salas. "Nossa proposta é criar nesse local um centro de
referência da luta contra a tortura e a violência do Estado – que não é algo
apenas dos tempos da ditadura. Queremos que o prédio seja uma condenação que a
democracia faz contra a tortura."
A iniciativa se inspira no Museu da
Resistência, que desde 2008 funciona no antigo edifício do Departamento
Estadual de Ordem Política e Social (Deops), na região da Luz, centro de São
Paulo, e atualmente registra uma visitação mensal de cerca de 5 mil pessoas.
"É o sexto museu mais frequentado da capital", pontua Maurice Politi,
membro do Núcleo de Preservação da Memória Política. "Numa cidade onde
funcionam 48 museus, o Memorial da Resistência fica atrás apenas do Museu do
Futebol, Masp, Pinacoteca, Língua Portuguesa e Museu de Arte Sacra, e a maioria
dos visitantes são jovens atrás de informação sobe a ditadura." Para
Politi, o interesse da população fará com que um novo memorial tenha ainda mais
apelo. "O DOI-Codi é muito mais simbólico e representativo que o Dops."
Tombamento
O presidente da Comissão paulista da
Verdade, deputado estadual Adriano Diogo (PT), recorda que já existe um
processo tramitando no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico,
Artístico e Turístico (Condephaat) com vistas ao tombamento do prédio. Por
isso, o órgão ligado à Secretaria de Estado da Cultura enviou duas
representantes à audiência pública para assistir aos depoimentos de ex-presos
políticos que passaram pelas instalações do DOI-Codi – inclusive sua
vice-presidenta, Marilia Barbour. O pedido de tombamento foi enviado ao
Condephaat em 2010, mas o órgão só aceitou iniciar a investigação em maio deste
ano.
Durante esse período, o processo correu em
sigilo para evitar que o prédio fosse demolido. Uma vez iniciado o trabalho de
pesquisa, o 36ª DP fica protegida de qualquer alteração. É a situação atual.
Dentro de seis meses, no máximo, os estudos sobre a importância cultural e
histórica do edifício estarão concluídos, e um relatório será enviado aos
conselheiros do Condephaat para que finalmente decidam sobre o tombamento do
local. Do ponto de vista técnico, Marilia Barbour acredita que não há razões
para que a antiga sede do DOI-Codi não receba parecer favorável do órgão. "Os
indícios são fortíssimos", reconhece. Já a transformação do imóvel em
museu ou memorial não diz respeito ao Condephaat. "Dependerá de outras
instâncias da administração pública."
Estudante de Física da Universidade de São
Paulo (USP) em 1972, quando foi preso e levado ao DOI-Codi, Artur Scavone veio
à Assembleia Legislativa contar um pouco do que passou nos nove meses em que
esteve detido no prédio. "O que ouvíamos ali era gritos, choros e berros o
tempo todo, todos os dias, de manhã, à tarde e de noite", revela. "E
havia um procedimento ameaçador permanente."
Scavone lembra de alguns detalhes que
contribuíam para o clima de terror que pairava sobre os prisioneiros. "Eles
faziam questão de jogar o cano do pau-de-arara no chão, para que o barulho
dissesse aos prisioneiros que o equipamento estava sendo montado e que alguém
ali seria torturado", diz. "O barulho da chave também era violento:
queria dizer que o carcereiro vinha abrir uma cela pra levar alguém pra
tortura."
Hoje médico, Reinaldo Morano também
frequentou as celas do DOI-Codi em 1970. Em seu depoimento à Comissão da
Verdade do Estado de São Paulo, Morano afirmou que estava em sua cela quando
José Maria Ferreira de Araújo, codinome Arariboia, foi preso, torturado e morto
em questão de horas. "De onde eu estava se ouviam os gritos", conta.
"Quando os berros cessaram, o carcereiro desceu e falou que ele tinha
morrido." O médico acredita que o tombamento do edifício onde hoje
funciona a 36ª DP é uma dívida que o Brasil tem para com seus cidadãos que
foram presos, torturados e assassinados no local. "É uma dívida que temos
com o Arariboia, Jonas, Herzog, Bacuri e todos os companheiros que foram
assassinados e torturados ali."
A procuradora regional da República Sandra
Kishi afirma que o tombamento da antiga sede do DOI-Codi vai valorizar os
direitos humanos e a democracia. "É inegável que o edifício guarda as
marcas da violência de um período histórico terrível, de um estado de
exceção", avalia. "É lógico que atualmente o tombamento deve se prestar
também para tutelar bens imateriais, como a memória coletiva. Portanto, é
possível que se tombe um prédio público pelo seu suporte imaterial. E tem mais:
o tombamento tem sido usado para reparar injustiças históricas."
Um motivo a mais para o tombamento do 36ª
DP, diz Ivan Seixas, do Condepe, é o relativo abandono em que se encontra o
prédio hoje em dia. "Onde ficavam as celas há uma espécie de almoxarifado
da Polícia Civil", afirma. "Não há ocupação do prédio. Portanto, a
utilização pra qualquer coisa, inclusive para nossa proposta, é absolutamente
viável."
Comentários