As forma de
descolamento por superioridade
tiveram sempre
íntima relação com as de
exclusão por
inferioridade
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"O conceito é antigo. Não sou historiador
mas, certamente, a ideia tem ao menos alguns de seus elementos constituídos na
antiguidade greco-romana. Com a cristandade, ganhou consistência e sentido
maior. O conceito de “pessoa”. Integrante da espécie humana. Filhos todos
do mesmo Pai. Irmãos, portanto. Por mais diferenças que possamos ter como
indivíduos, somos dotados de uma igualdade essencial e inalienável que nos é
dada pela comunhão da mesma espécie, pertinência à mesma comunidade global e à
humanidade.
Com a modernidade o conceito de “pessoa”
ganha foro laico, no âmbito político e jurídico. A “pessoa” vira “cidadão”. A
pertinência e a comunhão da mesma espécie biológica passam, então, a serem
reconhecidas como fato constitutivo da proteção política. Basta ser uma pessoa,
basta ser um integrante da humanidade para ser reconhecido como titular de
direitos mínimos perante uma ordem jurídico-estatal, inicialmente liberdades
públicas oponíveis à própria autoridade estatal – que, no correr do século XX,
são complementadas com direitos a um mínimo de existência material digna, ou
seja, no conjunto os chamados direitos humanos ou direitos fundamentais.
Na contemporaneidade, o conceito de pessoa,
em sua dimensão jurídica – sem perder sua dimensão política nem sua dimensão
histórica-cristã – é mais que um mero ente exercente de direitos e obrigações. É
o sopesamento perfeito entre os princípios ou valores de igualdade e liberdade.
Só há noção de pessoa a par da noção de
igualdade, pois só a partir dela é que se entende o humano como igual ao outro
humano, filhos que são do mesmo Pai, integrantes da mesma espécie, iguais em
essência, portanto.
Ao mesmo tempo, só a partir desta noção
igualitária de pessoa, como a do ser pertencente à espécie, pertencente à
grande família humana, é que se tem o conceito da mais relevante entre as
várias formas de liberdades humanas, qual seja não a de liberdade individual
que se opõe à maioria, mas a liberdade de pertencer à maioria como comunidade,
como família.
Não à toa a maior punição a que ordem
jurídica opõe ao individuo é aparta-lo da convivência com sua comunidade. Não
se trata de restringir seu direito de ir e vir genericamente considerado, pois
este pode ser restringido de forma genérica em várias situações sem graves
ofensas a vida individual, mas sim de restringir o direito de ir e vir de forma
a subtrair o indivíduo da vida em comunidade E todos sabemos como isso fere! Fora a
subtração da vida não há pena maior que nos separar dos entes queridos e da
vida em comunhão com nossa espécie.
Por mais que a ideologia liberal queira nos
fazer esquecer, a mais relevante liberdade é a de viver em comunidade, na
maioria e não contra ela. É com a sua subtração que a própria sociedade liberal
pune o indivíduo que realiza o crime, para proteger a sociedade mas também para
evitar o cometimento de crimes pela dissuasão, pois é sabido o temor humano da
perda da alteridade em sua existência.
Se de um lado a historia humana registra
desde a modernidade estas tentativas laicas de conformação jurídica e politica
deste conceito inclusivo de “pessoa” criado pela cristandade
Mas, de outro, desde priscas eras se
registram de forma contínua nesta mesma história humana formas mais ou menos
mascaradas de exclusão deste conceito comum e inclusivo, ou no sentido de excluir
pelo privilégio que diversas formas de elite procuraram se destacar do restante
da espécie por se considerarem superiores ou por formas de exclusão de parcela
dos integrantes por serem considerados hostis, inimigos, estranhos, perigosos
ou daninhos à sociedade ou mesmo não dotados de condições sociais, físicas,
estéticas ou intelectuais mínimas para se integrarem de forma saudável à
convivência com os demais em condições de igualdade. Obviamente as forma de
descolamento por superioridade tiveram sempre íntima relação com as de exclusão
por inferioridade.
Sem querer tratar de tema tão vasto em tão
poucas linhas, mas apenas para lembrar brevemente, assim foi com senhores
feudais de um lado e servos de outro, aristocratas e plebeus, elite rural e
escravos. Uns dotados de privilégios e outros não providos da condição de
“humanos”. Na antiguidade Zaffaroni se refere à exclusão dos hostis no direito
romano, Agambem a dos “Homo Sacer”.
Mas mesmo depois do surgimento da figura
jurídica do cidadão tivemos a constituição do “inimigo” sob vários nomes e
formas – mas sempre de modo a excluir certos grupos “a priori” da condição de
pessoa sem lhes conferir a proteção política e jurídica comuns aos demais
cidadãos. Assim aconteceu e acontece com os supostos “terroristas” (Patriotic
Act), os “drogados” (internação compulsória), os “mendigos” (expulsão dos
locais de convivência, violência etc), os “traficantes” e os “fichados” pela
polícia (execução sumária) e assim por diante.
Por outro lado os grandes contribuintes das
campanhas políticas, os muito ricos, as figuras públicas de grande influência
no publico, os donos dos meios comerciais de comunicação continuam sendo uma
cidadania especial, privilegiada, que é ouvida pelos poderes de Estado de uma
forma diferenciada que o resto da cidadania em suas decisões.
A última semana de notícias retratou este
triste quadro de cidadania excludente no Brasil. De um lado os queixumes de
Danuza Leão quanto à presença maior de integrantes da plebe ignara e
deselegante brasileira nas vias públicas e nos centros comerciais de Paris e
Nova York, produto da melhor distribuição de renda de nossos tempos. Ou seja:
da melhor realização do comum – e talvez não elegante – conceito de “pessoa”. O
“comum”, o irmão pobre e filho do mesmo pai, invadindo o que até pouco tempo
atrás era praia do irmão meio besta, descolado da família e elitista.
De outro lado, os mapas da morte do
inimigo. Jornalistas investigativos. Sim, eles ainda existem (são poucos, mas existem).
Apontam a execução de pessoas por agentes estatais pelo simples fato de terem
antecedentes criminais. E pior: com o apoio expressivo de parcela de nossa
sociedade. O suposto “inimigo” desprovido da condição mínima que deveria ser
outorgada a qualquer “pessoa”, o direito a vida.
O conteúdo das pesquisas de opinião desenha
a tragédia. Se fôssemos pela opinião de cerca de 40% dos entrevistados
outorgaríamos a nossos policias o poder máximo da exceção, do poder político
bruto, da soberania estatal em sua maior violência. Decidir sobre quem é o
“amigo” e o “inimigo”, decidir sobre a vida e a morte das pessoas. Decidir,
portanto, sobre quem merece ou não ser “pessoa”. No plano teológico, ocupar o
papel de Deus.
Acho que não há necessidade de argumentar
muito para mostrar a absoluta falta de senso na opinião destes 40% dos
entrevistados. A vida social, por óbvio, descambaria para a total barbárie e
para um patamar de violência muito maior da que já temos hoje. Sim, ela pode
aumentar muito e ficar muito pior. E não, é melhor não experimentar. A vida pública
não é um jogo de dados.”
Foto: Agência Brasil
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