Madalena, Madalena


Vitória. Figura lendária em Piracicaba,
sempre com seu lenço na cabeça,
Madalena teve uma vida dura.
Willian Vieira, CartaCapital

“Com o indefectível lenço na cabeça e os velhos tamancos cor de cobre a tropeçar no lixo do descampado que promete transformar em praça, Madalena interrompe o discurso pós-eleitoral para atender o celular. “Imagina, atiraram nimim coisa nenhuma! Tô vivíssima, doutor.” Primeira travesti eleita vereadora em Piracicaba, no conservador interior de São Paulo, ela engole em seco. “Era o pessoal da delegacia.” Vítima de telefonemas com ameaças de morte caso assuma, que ganharam vida no cruel vaticínio de um motoqueiro na porta de casa, Madalena dilui o medo entre os parabéns dos vizinhos, os acenos dos carros e os assobios dos rapazes que vendem drogas na esquina. “Aqui vou fazer uma praça para as crianças. E vou melhorar aquela outra.” Uma praça minúscula surge no fim da mão cravejada de anéis. “Eu que fiz.” Um moleque passa fumando crack numa lata de Coca-Cola. “Oi, Madá!” Ela sorri. “Falta serviço pra eles. Mas espera só eu assumir, que tudo isso vai mudar.”

Sob o número 45033, Luis Antônio Leite, ou melhor, Madalena, recebeu 3.035 votos em 7 de outubro. Foi a sétima vereadora mais votada de Piracicaba. Após tentar a candidatura como suplente em outros pleitos, diz, decidiu ir em frente sozinha. E pelo PSDB. “Foi o partido que me convidou, ué. Sou conhecida, eles tavam interessados nimim.” O atual prefeito chamou-a para o gabinete, conta, e sugeriu que ela saísse pela coligação (de dez partidos) do tucano Gabriel Ferrato. Uma foto de Madalena com Barjas Negri (PSDB) jaz na estante da sala. “Eu disse: ‘Olha, não tenho onde cair morta’.” As promessas foram muitas, lembra. Poucas cumpridas. “Me arrumaram dez cabos. Mas tinha de pagar o dia, marmitex, gasolina. Como eu ia fazer? Me deram 30 mil santinhos. É pouco, viu? Com mais 50 mil eu conseguia 10 mil votos.”

Afiada nos cálculos inerentes à prática política da noite para o dia, Madalena se orgulha ao narrar o pleito. “No começo era eu e o carro de som.” Como sua candidatura, com ajuda da mídia e dos famosos lencinhos, se espalhasse feito fogo na secura sazonal da região, o apoio cresceu. Um conhecido ofereceu café e almoço aos cabos. “Vai ser meu assessor.” Outro lhe bateu à porta e ofereceu um carro em troca do mesmo cargo. “Era o Beto Pastor. Eu disse: ‘Olha, se trabalhar bem não tem problema’.” Beto ganha a vida com a distribuição de folhetos. Foi um passo certeiro. “Ele dava os santinho (sic) embrulhado nos folheto. Aí muita gente de outros bairros soube quem eu era.”

Madalena acordava às 5 da madrugada para tomar o ônibus 1200 e ir ao barracão da prefeitura, onde fazia manutenção de tudo, das torneiras que pingam ao brilho do chão, enquanto projetava a logística da campanha. “Eu pedia 1 real pra um, 2 pra outro. Todo mundo ajudava.” À 1 da tarde o carro a buscava. Os dois iam na frente, abrindo caminho pela periferia ao som da música de Martinho da Vila: Madalena, Madalena./Você é meu bem querer./ Eu vou falar pra todo mundo, /vou falar pra todo mundo, /que eu só quero é você. Atrás ia o carro do Pastor, microfone na mão, a discorrer sobre os feitos da candidata como presidenta do centro comunitário do bairro Boa Esperança.

A prova de sua retidão está aí, diz. “Os presidentes pegam o dinheiro e reforma casa, compra carro. Eu não. É só ver meu barraco pra saber que sou honesta.” Sentada numa cadeira de praia no quintal, lambida pelo poodle vira-lata “Poodle”, ela conta que comprou o terreno, ergueu um quarto e se mudou há duas décadas. Aos poucos, construiu a casa. As duas geladeiras velhas, encimadas por santos de gesso, o fogão e o sofá foram doações. “Na última eleição fui cabo de uma candidata que prometeu terminar a casa se ganhasse. Ganhou, mas fez só um reboco e deixou o resto. Parece que outro candidato ameaçou ir pra Justiça. Me danei.” Em todos os meandros, a eleição de Madalena é um tratado de teoria política aplicado à vida real. Sua campanha tem todos os passos do arcaico pragmatismo eleitoral, que aqui, na modorra calorenta do interior, jaz como monumento à imobilidade.
Eleita vereadora em uma campanha repleta de favores pouco inocentes, ela promete fazer praças onde hoje há mato e lixo e olhar mais pelo “povão”.
Nascida num bairro pobre, caçula de cinco irmãos, perdeu a mãe aos 7 anos. “Meu pai não conheci.” O padrasto a espancava. “Eu já vestia lencinho, usava tamanquinho. Sabe como é.” Com 14 anos, saiu de casa e fez faxina por dia para não morrer de fome. Na épica de sua autobiografia improvisada, o momento em que adentrou a casa de Ditinha Penezzi foi um divisor de águas. Lá aprendeu a ser doméstica e dominou as artes de passar as brancas golas das camisas do doutor. Mais de 15 anos se passaram numa das cinco casas da família, até a morte da matriarca. Cozinhou ainda para as 25 meninas da “casa de rendez-vous” Germano e trabalhou na república de estudantes onde um dia promoveram um concurso para batizá-la e da caixinha de sugestões saiu Madalena. Até virar presidenta do centro comunitário e entrar para a política.

Com uma história assim, Madalena não ousaria se furtar o direito de assumir o cargo para o qual foi ungida pela mesma política que a ameaça. Escolheu até o terno para a posse, doado por um dos futuros assessores, que vai “ornar” com um lenço colorido e garantir a esse negro de 1,80 metro a envergadura cênica necessária para entrar gloriosa na Câmara de Vereadores de Piracicaba, em 1º de janeiro de 2013. Se alguém está de olho no salário de 10,9 mil reais que vai receber, quase 13 vezes os 800 reais que hoje ganha como servente, paciência. Madalena vai terminar sua casa, contratar seus assessores e tocar a vida. Não que o dinheiro seja o mais importante. “Eu gosto é de ajudar o povo.” Por isso, a despeito das ameaças, ela vai assumir. “Apanhei muito da vida. Não vou desistir agora que ganhei pela primeira vez.”
Fotos: Isadora Pamplona

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