Vitória. Figura
lendária em Piracicaba,
sempre com seu
lenço na cabeça,
Madalena teve uma
vida dura.
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“Com o indefectível lenço na cabeça e os
velhos tamancos cor de cobre a tropeçar no lixo do descampado que promete
transformar em praça, Madalena interrompe o discurso pós-eleitoral para atender
o celular. “Imagina, atiraram nimim coisa nenhuma! Tô vivíssima, doutor.”
Primeira travesti eleita vereadora em Piracicaba, no conservador interior de
São Paulo, ela engole em seco. “Era o pessoal da delegacia.” Vítima de
telefonemas com ameaças de morte caso assuma, que ganharam vida no cruel
vaticínio de um motoqueiro na porta de casa, Madalena dilui o medo entre os
parabéns dos vizinhos, os acenos dos carros e os assobios dos rapazes que
vendem drogas na esquina. “Aqui vou fazer uma praça para as crianças. E vou
melhorar aquela outra.” Uma praça minúscula surge no fim da mão cravejada de
anéis. “Eu que fiz.” Um moleque passa fumando crack numa lata de Coca-Cola.
“Oi, Madá!” Ela sorri. “Falta serviço pra eles. Mas espera só eu assumir, que
tudo isso vai mudar.”
Sob
o número 45033, Luis Antônio Leite, ou melhor, Madalena,
recebeu 3.035 votos em 7 de outubro. Foi a sétima vereadora mais votada de
Piracicaba. Após tentar a candidatura como suplente em outros pleitos, diz,
decidiu ir em frente sozinha. E pelo PSDB. “Foi o partido que me convidou, ué. Sou
conhecida, eles tavam interessados nimim.” O atual prefeito chamou-a para o
gabinete, conta, e sugeriu que ela saísse pela coligação (de dez partidos) do
tucano Gabriel Ferrato. Uma foto de Madalena com Barjas Negri (PSDB) jaz na
estante da sala. “Eu disse: ‘Olha, não tenho onde cair morta’.” As promessas
foram muitas, lembra. Poucas cumpridas. “Me arrumaram dez cabos. Mas tinha de
pagar o dia, marmitex, gasolina. Como eu ia fazer? Me deram 30 mil santinhos. É
pouco, viu? Com mais 50 mil eu conseguia 10 mil votos.”
Afiada nos cálculos inerentes à prática
política da noite para o dia, Madalena se orgulha ao narrar o pleito. “No
começo era eu e o carro de som.” Como sua candidatura, com ajuda da mídia e dos
famosos lencinhos, se espalhasse feito fogo na secura sazonal da região, o
apoio cresceu. Um conhecido ofereceu café e almoço aos cabos. “Vai ser meu
assessor.” Outro lhe bateu à porta e ofereceu um carro em troca do mesmo cargo.
“Era o Beto Pastor. Eu disse: ‘Olha, se trabalhar bem não tem problema’.” Beto
ganha a vida com a distribuição de folhetos. Foi um passo certeiro. “Ele dava
os santinho (sic) embrulhado nos folheto. Aí muita gente de outros bairros
soube quem eu era.”
Madalena acordava às 5 da madrugada para
tomar o ônibus 1200 e ir ao barracão da prefeitura, onde fazia manutenção de
tudo, das torneiras que pingam ao brilho do chão, enquanto projetava a
logística da campanha. “Eu pedia 1 real pra um, 2 pra outro. Todo mundo
ajudava.” À 1 da tarde o carro a buscava. Os dois iam na frente, abrindo
caminho pela periferia ao som da música de Martinho da Vila: Madalena,
Madalena./Você é meu bem querer./ Eu vou falar pra todo mundo, /vou falar pra
todo mundo, /que eu só quero é você. Atrás ia o carro do Pastor, microfone na
mão, a discorrer sobre os feitos da candidata como presidenta do centro
comunitário do bairro Boa Esperança.
A
prova de sua retidão está aí, diz. “Os presidentes
pegam o dinheiro e reforma casa, compra carro. Eu não. É só ver meu barraco pra
saber que sou honesta.” Sentada numa cadeira de praia no quintal, lambida pelo
poodle vira-lata “Poodle”, ela conta que comprou o terreno, ergueu um quarto e
se mudou há duas décadas. Aos poucos, construiu a casa. As duas geladeiras
velhas, encimadas por santos de gesso, o fogão e o sofá foram doações. “Na
última eleição fui cabo de uma candidata que prometeu terminar a casa se
ganhasse. Ganhou, mas fez só um reboco e deixou o resto. Parece que outro
candidato ameaçou ir pra Justiça. Me danei.” Em todos os meandros, a eleição de
Madalena é um tratado de teoria política aplicado à vida real. Sua campanha tem
todos os passos do arcaico pragmatismo eleitoral, que aqui, na modorra calorenta
do interior, jaz como monumento à imobilidade.
Eleita vereadora
em uma campanha repleta de favores pouco inocentes, ela promete fazer praças
onde hoje há mato e lixo e olhar mais pelo “povão”.
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Nascida num bairro pobre, caçula de cinco
irmãos, perdeu a mãe aos 7 anos. “Meu pai não conheci.” O padrasto a espancava.
“Eu já vestia lencinho, usava tamanquinho. Sabe como é.” Com 14 anos, saiu de
casa e fez faxina por dia para não morrer de fome. Na épica de sua
autobiografia improvisada, o momento em que adentrou a casa de Ditinha Penezzi
foi um divisor de águas. Lá aprendeu a ser doméstica e dominou as artes de
passar as brancas golas das camisas do doutor. Mais de 15 anos se passaram numa
das cinco casas da família, até a morte da matriarca. Cozinhou ainda para as 25
meninas da “casa de rendez-vous” Germano e trabalhou na república de estudantes
onde um dia promoveram um concurso para batizá-la e da caixinha de sugestões
saiu Madalena. Até virar presidenta do centro comunitário e entrar para a
política.
Com uma história assim, Madalena não
ousaria se furtar o direito de assumir o cargo para o qual foi ungida pela
mesma política que a ameaça. Escolheu até o terno para a posse, doado por um
dos futuros assessores, que vai “ornar” com um lenço colorido e garantir a esse
negro de 1,80 metro a envergadura cênica necessária para entrar gloriosa na
Câmara de Vereadores de Piracicaba, em 1º de janeiro de 2013. Se alguém está de
olho no salário de 10,9 mil reais que vai receber, quase 13 vezes os 800 reais
que hoje ganha como servente, paciência. Madalena vai terminar sua casa,
contratar seus assessores e tocar a vida. Não que o dinheiro seja o mais
importante. “Eu gosto é de ajudar o povo.” Por isso, a despeito das ameaças,
ela vai assumir. “Apanhei muito da vida. Não vou desistir agora que ganhei pela
primeira vez.”
Fotos: Isadora Pamplona
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