‘Nós estamos emergindo e vamos continuar a emergir’

Redação, IPEA / Envolverde

"O Brasil deixou de ser o eterno país do futuro, acho que o futuro chegou, um pouco. Por que nós éramos o eterno país do futuro? Porque éramos um país rico e profundamente desigual. E essa desigualdade não era simplesmente de renda. Era uma desigualdade de gênero, étnica, que se dava em termos regionais, em termos educacionais, assimetrias culturais etc. Nós começamos a resolver a desigualdade social em termos de renda. E demos alguns passos importantes para resolver os temas das desigualdades regionais". A avaliação é de Marco Aurélio Garcia, Assessor da Presidência República para Assuntos Internacionais, em entrevista para a revista Desafios do Desenvolvimento, do IPEA.

Desafios do Desenvolvimento (IPEA)

“Nós estamos emergindo e vamos continuar a emergir. Há outros países que já são desenvolvidos que estão imergindo, estão afundando. O grande problema que nós temos aqui é o seguinte: nós começamos, a meu juízo, a enfrentar a questão chave que o País tinha que, de uma certa forma, abriu espaço para resolver as demais, que era questão social. Por que nós éramos o eterno país do futuro? Porque nós éramos um país rico e profundamente desigual”. A opinião é de Marco Aurélio Garcia, assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assuntos internacionais em entrevista à Andréa Vieira e publicada revista Desafios do Desenvolvimento, janeiro-fevereiro/2010, do Ipea.

Em palestra no Ipea, o senhor afirmou que instituições internacionais estão caducas. Gostaria que o senhor explicasse essa posição.


Acho que tem três tipos de caducidade. Primeiro do ponto de vista dos pressupostos com os quais FMI e o Banco Mundial, mais particularmente o Fundo, trabalharam durante esses últimos anos. Eles foram muito lenientes no que diz respeito à desordem econômica internacional que estava se armando, estimulavam as ideias de desregulamentação, foram extremamente ortodoxos na cobrança de políticas austeras por parte dos países, sobretudo os pobres e emergentes, o que significou em grande medida que esses países se viram inviabilizados. E parece que algumas dessas questões persistem hoje. Se nós verificarmos os conselhos que foram dados, segundo o noticiário, pelo FMI para a Europa, agora nós vamos ver que uma das principais recomendações parece ser o corte de salários. Ora, a tendência em momentos de crise é impulsionar políticas heterodoxas, políticas anticíclicas! Então eu acho que esse problema que parecia superado depois da eleição do Dominique Strauss-Kahn para o FMI, ainda não está perfeitamente equacionado.

O segundo aspecto está ligado à operacionalidade dessas entidades muito burocratizadas. O atraso na rodada de Doha é um caso típico, em circunstâncias que num determinado momento as coisas estavam praticamente para ser resolvidas. Na última hora, no final da gestão Bush nos EUA e no limiar de uma eleição na Índia, as negociações fracassaram. O terceiro aspecto, também mais ligado à direção, porém mais tangível, é a questão da representatividade. Salvo a OMC, onde cada país tem um voto, nas outras entidades nós temos uma distribuição muito perversa das organizações de poder que não corresponde mais à correlação de forças internacionais, que ainda é acompanhada de uma prática habitual, uma espécie de um condomínio Europa-EUA.

É possível estruturar uma instituição multilateral realmente eficiente e representativa de todas as nações ou reorganizar as já existentes? Como seria?

Eu acho que isso deve ser tentado. Se nós praticarmos de forma mais intensa uma concepção multilateral das organizações internacionais, isso é factível. Agora, se nós acharmos que o mundo tem que ser regido por um grupo restrito de potências, não vai ser possível. A grande verdade é que essa alternativa da hegemonia de um grupo pequeno de potências também conduz a um impasse. Acho que o exemplo mais claro disso foi a reunião de Copenhague, onde tudo ficou bloqueado em grande medida por causa da decisão dos Estados Unidos no que diz respeito às metas de controle de emissão (de gases). Isso fez com que a Europa retrocedesse naquilo que ela havia proposto e deixou os outros países olhando o céu. O grande problema, se não houver essa democratização das organizações internacionais, é uma paralisação das relações internacionais. Isso não é bom.

A crise internacional expôs uma série de falhas do sistema financeiro mundial. Falou-se em regulação e fiscalização dos mercados, mas até agora nada foi feito. Por que isso é tão difícil?

É difícil porque fere interesses nacionais importantes e porque nós hoje enfrentamos uma crise de liderança mundial muito grande. Lembramos que o antecedente que nós tivemos foi a crise de 1929. No que diz respeito aos Estados Unidos, ela começou a ser enfrentada num primeiro momento com medidas extremamente corajosas, muito mais radicais, mas a grande
resolução da crise de 1929 foi a guerra. Então esse é um risco real.

Quando os países se reuniram em 1944, em Bretton Woods, para tentar definir uma nova arquitetura financeira internacional, eles estavam fazendo uma autocrítica da sua inação no que diz respeito a evitar os desdobramentos da crise. Quer dizer, antes que a guerra tivesse ocorrido e, como causa dessa guerra, inclusive, nós tivemos a ascensão do fascismo na Itália, a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, de uma certa forma a guerra civil espanhola, o êxito e depois o fracasso da experiência da frente popular na França, enfim, uma série de fenômenos que, sem dúvida nenhuma, qualquer historiador vai localizar nas origens da Segunda Guerra Mundial.

Caso nada seja feito nesse momento para estabelecer uma ordem econômica mais organizada e sustentável, o que pode acontecer?

O mundo pode se transformar num grande paiol de pólvora. E quando há um paiol de pólvora, qualquer fósforo produz uma explosão.

O senhor fala em guerra mesmo?

Por que não? Não quero ser catastrofista, mas eu acho que essa é uma das razões pelas quais, talvez, todos os esforços de neutralização dos pontos de tensão internacional são de fundamental importância.

Isso justifica a preocupação em aumentar a defesa do Brasil?

Eu não diria aumentar, mas adequá-la. Nós estávamos com um sistema de defesa que não correspondia mais às necessidades do País, entende? Nós precisamos ter adequação. Nós não precisamos ter forças armadas para desfile militar. Nós precisamos ter forças armadas para proteger o País. Acho que esse tema, grosso modo, está sendo colocado em quase todos os países da América Latina. Então, por essa razão, eu não vejo que a América Latina, em particular a América do Sul, seja uma região que possa ser capitulada como uma região de tensão internacional. Mas há outras regiões com focos de tensão que todos os dias estão se manifestando. O crescimento da economia chinesa será acompanhado ou não de uma estratégia de consolidação da China como potência militar? Não sei. É bem possível. As tensões que estão se produzindo agora entre China e Estados Unidos em função do refortalecimento dos armamentos de Taiwan? Há regiões de enorme tensão no mundo hoje como Paquistão, Afeganistão, Palestina...”
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